Esoterismo e experiência de Deus

Limitação humana. Somos seres necessitados de sentido e o buscamos desesperados, por toda parte e com todas as nossas forças. Essa busca é universal e milenária, pois todos nos sentimos incompletos, limitados, imaturos, fracos, enfermos, insatisfeitos e pecadores. Não poucas vezes, e hoje mais do que nunca, sentimo-nos ameaçados não só pelos fenômenos da natureza, mas também por tudo aquilo que conseguimos fazer como obra de nossas mãos e inteligência. A sociedade que temos, com todo o seu poderio industrial e bélico, é terrificante. Diante dos desequilíbrios da natureza e do poderio desta sociedade que construímos, nos sentimos como crianças desamparadas. Daí a sua corrida para o mundo da magia, da ciência ou de ideologias extremas que prometam proteção e nova ordem humana e social.

Diante do mistério da vida e da ameaça de morte, buscamos respostas satisfatórias, lá onde elas possam se encontrar. Realidades tão complexas quanto é a miséria, doença, violência, injustiça, pecado, morte, demônio, perdão, libertação, iluminação, justificação permeiam por todo lado a vida ou sobrevida dos humanos. O que fazer?

No meio desses sinais de vida e de morte que nos rodeiam, os elementos esotéricos (do grego "soter" = salvação; procurar a salvação por conta própria) aparecem por toda parte. Diante de situações de extrema complexidade, o homem moderno fica cada vez mais perplexo. As pessoas buscam algo que lhes dê sentido de vida e não poucas se sentem atraídas por fenômenos religiosos "estranhos" que se iniciaram, um dia, dentro do cristianismo mas aos poucos, foram tomando conotações próprias, chegando-se a transformar em movimentos religiosos independentes (comumente conhecidos como "seitas").

Deixando de lado os que seguem a Bíblia como caminho e norma, encontramos outras pessoas e até grupos constituídos como organizações de tipo quase empresarial, que atraem mais "clientes" do que "fiéis", oferecendo-lhes uma diversidade de "produtos" que prometem felicidade e segurança. Esta onda consumista do religioso é de tal modo forte que as pessoas já estão se acostumando a se fazer presentes em diversos lugares, antes excludentes, em busca de algum sentido para viver. Há propostas de todo tipo: cura divina, felicidade, consultas (de tarô, numerologia, cabala, jogo de búzios, I Ching, leitura das mãos etc.), Mapa astral, objetos de sorte, incenso, talismãs, sementes (olho-de-cabra, olho-de-boi) e bonecos da sorte (gnomos, duendes, sacis, bruxas, fadas), runas...

É tal a avalanche de propostas oferecidas que a mesma CNBB dedicou um documento ao assunto em 1991 (Estudos da CNBB, nº 62: Igreja Católica diante do pluralismo religioso no Brasil). A gente se faz algumas perguntas: essa situação é nova? Onde residem as suas causas? O que isso nos quer mostrar? Quanto tempo vai durar? Como se situar diante de tudo isso?...

Sabemos que o fato religioso cristão surge no meio de uma cultura situada no judaísmo (Israel) e no paganismo (Grécia, Roma). Tanto uma como outra deixaram suas marcas no cristianismo. O judaísmo se coloca diante do Todo-poderoso mediatizado pela Lei. A Torá revelada e sagrada era o ponto de encontro entre Deus e os homens e entre os homens e Deus. O Deus transcendente e por vezes distante, era seguido, cultuado e adorado mediante o cumprimento rigoroso da Lei. Tanto os profetas como os reis lembraram constantemente o valor dessas mediações. Com o passar do tempo a Lei pedagoga se transformou em opressora exigindo das pessoas uma submissão avassaladora.

O paganismo, por outro lado, não brotou como um movimento agnóstico ou ateu, pelo contrário cultuava-se uma infinidade de entidades divinas conforme as necessidades, profundas ou superficiais, dos humanos. O fenômeno religioso entre os pagãos surge, pois, como uma expansão do coração humano que deseja ter propício (adorar ou controlar) os deuses que cada um achar necessário, para melhor poder viver e conviver. No paganismo não é a Lei que orienta o relacionamento humano-divino mas o próprio coração. Cada um adora e cultua aquele ou aquilo que achar e sentir melhor para si.

O cristianismo não se confunde com nenhum destes dois movimentos. Embora no seu bojo primitivo carregue judeus convertidos e pagãos cristianizados. O Cristianismo surge como um fato novo: ele supera a Lei revelada e também o próprio coração por mais importantes que um e outro possam ser. O Cristianismo é só fruto da GRAÇA dada, da gratuidade do dom de Deus revelado definitivamente em Jesus Cristo. Paulo rompe definitivamente com a Sinagoga ao afirmar categoricamente que a justificação não é obra da Lei, mas da fé em Jesus Cristo!

Nas águas novas do cristianismo misturaram-se também aquelas outras vindas da tradição judaica ou da experiência pagã, pois tanto uma como outra fizeram parte das primeiras comunidades apostólicas. Na história da Igreja se percebe épocas onde se destaca, com maior força, ora uma (primado da Lei: eclesiástica, canônica, política...) ora outra (reinado do próprio sujeito e do seu coração). O "fundamentalismo" (absolutização da Lei) e o "protestantismo" (absolutização do livre arbítrio do sujeito) são filhos gerados numa dessas duas vertentes.  O fato cristão nasce da graça (gratuita!) de Jesus que rompe toda absolutização seja da Lei seja ao do próprio coração.

Não só a Lei dada (exterior) e o coração (interior) correm o risco permanente de se afastar um do outro, mas existem também outras causas externas (cosmogonias: natureza, astros...) ou internas (psiquê, sonhos, imaginação, desejos...) que podem nos influenciar ilusoriamente, percorrendo novos caminhos "religiosos". Na história da Igreja surgiram, provavelmente por desejos de maior coerência e comunhão com Deus, movimentos religiosos e correntes alternativas que se desviaram precocemente do seu berço ortodoxo materno, chegando até não se identificar absolutamente com ele. Provavelmente algumas dessas experiências religiosas novas brotam do substrato histórico inconsciente, pois dentro de cada um de nós existem arquétipos pagãos, judeus e até agnósticos ou ateus de inúmeros significados.

Lidar com o esotérico é entrar em contato com essas áreas desconhecidas que têm suas raízes, não poucas vezes, no "eu profundo" de cada um.

1. A experiência Religiosa Revelada. A Revelação Cristã tem uma dimensão transcendente (fora do homem) e outra imanente (dentro do coração do homem). A tensão entre o dado revelado (objetivo) e o percebido (subjetivo) não pode ser, de modo algum, rompido ou substituído. Ambos atributos são necessários. Querer prescindir de um deles é danificar o dado cristão. Contudo, o sentido revelado (externo), ainda não totalmente percebido (interno), pode aflorar de algum modo em certos momentos. A experiência religiosa (seja ela da ordem que for) é o lugar privilegiado para tal percepção.

A "Gnose" (gnosis = conhecimento) teve outrora, nos seus primórdios, um sentido autenticamente cristão, significando o conhecimento carismático e impregnado de "ágape" (interno!) do fato revelado (externo!) que Paulo atribui ao homem espiritual. Certamente nos encontramos muito perto daquilo que entendemos por “experiência de Deus”.

Hoje, a "gnose" adquiriu um sentido heterodoxo (interno), esotérico, tendo rompido com o dado objetivo revelado (externo) e se manifesta, geralmente, com as seguintes características:

a) Alienação da realidade presente (concreta) e fuga para a esfera do próprio parecer e subjetividade.
b) Desprezo do material: dicotomia absoluta entre o espiritual e o corporal.
c) Rejeição de toda norma externa. Primado do sujeito!
d) Salvação sem nenhuma mediação.

O gnosticismo, como atitude de contestação, é uma bela tentação e sempre reaparece na história do cristianismo. A própria comunidade de Qumram parece ser uma Gnose no meio do judaísmo! Paulo fala contra os que colocam a salvação fora de Jesus Cristo ou acham o matrimônio pecaminoso. Mesma insistência de João ao dizer que o Verbo se fez carne é uma refutação de um gnosticismo implícito em alguns cristãos da comunidade. No século II uma forma perigosa de gnose, vinda do oriente e enriquecida com elementos cristãos, se fez presente nas pessoas cultas da comunidade. Surgiu primeiro em Antioquia, na escola "doceta" (dokein = aparecer). Segundo eles, Jesus "parecia" ter corpo humano; "parecia" sofrer na Cruz, mas ele tinha um corpo "etéreo" e insofrível.

Mais tarde, alguns discípulos de Valentin em Roma (a. 145-160) rejeitavam, de modo radical os elementos Judeus das escrituras, valorizando apenas o Evangelho de Lucas e algumas cartas paulinas, expurgadas de tudo o que parecesse judaísmo (Santos como Justino, Irineu, Hipólito tiveram que enfrentar seriamente esse problema nas suas comunidades, afirmando categoricamente a humanidade de Cristo e, como conseqüência, a dignidade da carne (ressurreição da carne!). A Teo-sofia, antropo-sofia, rosa-cruzes... são formas atuais duma "gnose" heterodoxa que começou muitos anos atrás!

A gnose é, pois, um conhecimento que não provém de uma revelação pessoal de Deus (que é graça!), mas de uma descoberta interior do que parece ser a essência do homem.

O fato cristão brota de um ato obediente da fé (interior) diante da Palavra de Deus (exterior) e não de uma "tomada de consciência" gnóstica. Na Gnose, o conhecimento é já e por ele mesmo redentor.

O homem, segundo eles, encontra em si mesmo a unidade absoluta do real, unidade que engloba tudo e não precisa de mais nada nem de ninguém! Estamos a um passo da absolutização do homem e da morte de Deus, passo que será dado por alguns filósofos e ideólogos modernos.

O homem moderno, filho de tantas rupturas (exteriores e interiores), é um ser fragmentado e secularizado, mas ao mesmo tempo fica deslumbrado pelo que vê tanto fora como dentro de si. Essas descobertas magníficas, científicas (exteriores) ou profundas (interiores) o colocam quase que imperceptivelmente nos umbrais de um fascínio religioso delirante.

A busca pela própria felicidade, o relativismo das normas, o subjetivismo emergem como características do que é chamado, hoje, de pós-modernidade. Uma mentalidade mágico-utilitarista no trato com o sagrado, a auto-satisfação do indivíduo e ao mesmo tempo o desejo descomprometido de estar com o outro, aparecem como distintivos básicos do homem de hoje. Busca-se o sagrado (aquilo que rodeia Deus!) e se deixa de lado a pessoa de Deus (verdadeiro centro da experiência!). Não é este o caminho do cristianismo.

2. Experiência Religiosa e Experiência de Deus. Hoje fala-se frequentemente de "experiência" como algo  contraposto ao puramente racional e lógico. Aliás, não poucas vezes, a "experiência" se tornou facilitadora e legitimadora de inumeráveis situações.

Experi6encia é "comprovar", "assegurar-se", percorrer e abarcar o objeto em todos os sentidos. Não existe experiência sem um objeto (a ser sentido, contemplado e "penetrado") e sem um sujeito (capaz de ter essa percepção). Há uma diferença significativa na "experiência" originada entre um sujeito que contempla um objeto e aquela outra surgida entre um sujeito que se relaciona com outro sujeito. Assim podemos falar de :
a) Experiência objetiva: relacionamento sujeito-objeto.
b) Experiência inter-subjetiva: relacionamento sujeito-sujeito.
c) Experiência subjetiva: relacionamento do sujeito consigo mesmo.

Aceitando esta distinção, colocamos a experiência religiosa como um relacionamento sujeito-objeto (entendendo por objeto tudo aquilo que rodeia - mediações! - a pessoa de Deus) ou mesmo uma experiência subjetiva (intra psíquica). A experiência de Deus (experiência do sentido radical, absoluto) é uma experiência inter-subjetiva, entre pessoas que se relacionam e se influenciam de algum modo. A experiência religiosa é exequivel ao homem pela sua própria possibilidade e capacidade de compreender aquilo (mediação sempre finita!) que rodeia Deus, mas não é Deus. Ela pode ser manipulada, de certo modo, pelo homem. A experiência de Deus, pelo contrário, se nos escapa das nossas próprias mãos pela sua infinitude e transcendência absolutas. Ela é imanipulável!

Como atingir, por nossas próprias forças, o inatingível? Como compreender o incompreensível? Deus é experienciável quando emerge como o sentido último da vida. Por trás das nuvens que o escondem, superando toda mediação, purificando todo sentido encontra-se Ele, comunidade perfeita, fonte de todo relacionamento. Por isso, quando esse relacionamento sujeito-sujeito acontece é por pura iniciativa divina. Agora entendemos porque nem sempre toda "experiência religiosa" é experiência de Deus e nem toda "experiência de Deus" é, estruturalmente experiência religiosa!

A "experiência religiosa" pode ser comum a inúmeras pessoas, sem elas terem em conta a coerência moral dos seus atos. É possível atingir o objeto, a mediação "religiosa" e desencadear, dentro de si, emoções, sentimentos e pensamentos relacionados com o que dito "objeto" trata de mediar. Toda experiência primitiva "totêmica", e seus derivados atuais, pertencem a esta ordem. As coisas não são Deus, mas podem de algum modo revelá-lo! A experiência de Deus acontece na superação do invólucro mediatório, até chegar ao núcleo pessoal que o habita: Deus escondido!

3. A experiência Cristã de Deus. Diante da situação moral e social caótica em que nos encontramos, diante da queda de tantas mediações que pareciam, no seu tempo, absolutas na sua significância, os cristãos se perguntam em que se apoiar verdadeiramente e se abrem, cada vez mais numerosos, para o encontro interpessoal (experiência!) com Deus revelado em Jesus Cristo. Sem a experiência de Deus não parece ser possível uma verdadeira vida Cristã!

Contudo, algumas perguntas podem ser feitas: a “experiência” feita é realmente de Deus ou de si próprio? Será que Deus se interessa mesmo por nós? Como usar as mediações sem ficarmos nelas? Como saber que estou me encontrando com Deus e não com a mediação que me aproxima dele?

As respostas "teóricas" podem ser múltiplas, as "práticas" não são tantas. Vejamos algumas:
a) O relacionamento “imediato” com Deus não é possível. Por mais que tentemos sempre ficaremos presos ao mundo das mediações, dos "sinais", sacramentos e sacramentais. Esta primeira resposta nos deixaria eternamente nas sombras de qualquer tipo de relacionamento interpessoal e, aos poucos, converter-se-ia num ceticismo onde nada é importante nem absoluto.
b) O relacionamento interpessoal imediato com Deus talvez seja possível para alguns, mas não para a maioria dos mortais. Estes se contentam com as migalhas que caem da mesa daqueles que tiveram a sorte (ou coragem?) de se encontrar com Deus. Fundamentam a própria fé no testemunho dosoutros, naquilo que dizem ter visto, ouvido e experimentado. Vive-se sempre na dependência do testemunho de outros.
c) A experiência “imediata” de Deus é possível, se Ele tomar a iniciativa. O homem tem uma capacidade doada de auto-transcender-se e ser parceiro do TU divino. Quando isso acontece, eles testemunham convictos: "sim, Deus entrou, um dia, na minha vida! Ele me tocou! Eu tenho experimentado, verdadeiramente, seu amor e sua salvação!..." Estes afirmam com segurança o acontecido e suas palavras brotam com força e seu testemunho de vida o certifica.

Evidentemente que nós, cristãos do século XXI não somos os primeiros (nem os últimos!) a manter esse diálogo com Deus. O AT nos apresenta continuamente esse relacionamento salvífico de Deus com um povo, exigindo deles uma resposta coerente. Os apóstolos também tiveram que dar uma resposta adequada à Palavra viva que os alcançava. A convicção deles se baseava nas experiências ("vendo, ouvindo e tocando") que tiveram com Jesus. Se Deus outrora realmente se comunicou, também hoje pode fazê-lo conosco. Esse diálogo provoca consequências e compromissos encantadores e coloca em evidência que há um Alguém muito maior do que nós, tornando possível o que pareceria ser impossível.

Os outros mostram, como num espelho, aquilo que somos. O absolutamente Outro revela, pela mesma razão, o mais profundo da nossa existência. Negando a alteridade, seja de quem for, perdemos a nossa identidade.

A experiência Cristã de Deus é experiência do sentido radical (revelado definitiva e totalmente em Jesus). É uma experiência espiritual (embora "encarnada", no tempo e no espaço), pela fé em Jesus Cristo (onde o sentido radical se particularizou absolutamente e nele se abriu a todos nós). O resultado deste relacionamento experiencial é totalizante e aglutinador (sanativo, salvífico). Dele brota um sentido de vida diferente que se traduz em valores e comportamentos morais exigentes (práticos) e evangélicos (gratuitos). A experiência de Deus em Jesus Cristo implica, pois, num relacionamento inter-subjetivo pela fé, tocando todas as dimensões da pessoa humana: sensibilidade, afetividade, valores e ações. A orientação profunda de vida (opção fundamental!) de qualquer pessoa indica o Espírito que a move e guia!

Inácio de Loyola, no fim da Idade Média, se coloca na corrente dos que experienciaram, de algum modo, o Deus escondido. O Infinito, aos poucos, foi tomando rosto e nome e entrou um dia no finito, marcando-o indelevelmente. Os Exercícios Espirituais (EE) como método de diálogo com Deus e com os homens (acompanhante!) são a prova mais clara do que Inácio experimentou e legou. Inácio privilegiou a experiência e não o conhecimento: "o que sacia e satifaz a alma não é o muito saber, mas o sentir e saborear as coisas internamente..." (EE 3).

4. A experiência de Deus nos Exercícios Espirituais. Encontrar Deus em todas as coisas é o fim primordial dos EE de Santo Inácio. Este homem encontrou um caminho interior que nos coloca nos umbrais do divino. Ele mesmo experimentou o Absoluto "in-dizível", balbuciando o seu santo nome (Três pessoas divinas, Pai, Senhor Eterno, Senhor e Criador, Filho, Rei Eterno, Senhor Universal, Menino Jesus, Verbo Eterno...) e "bem-dizendo" sua vida "mal-dita" e deteriorada.

Os EE são uma ajuda para "ler" o tipo de experiência acontecida na própria vida. Santo Inácio queria que todos os que fazem os EE pudessem decifrar esse mesmo tipo de "leitura" não só nos tempos da oração, mas em todo o seu agir e viver.

Inácio fala, no texto dos EE, da possibilidade de uma experiência imediata de Deus. O ponto de partida do processo dos EE é, pois, essa possibilidade relacional, cheia de história, entre dois sujeitos que aos poucos se vão conhecendo, relacionando e amando. É possível a relação dialogal Deus-homem, possibilidade dada antecipadamente por Deus. Esse relacionamento interpessoal humano-divino e a sua resposta, fundamentam os EE, e é chamado de "experiência de Deus".
Quando falamos de "experiência de Deus" não nos referimos a uma atividade nossa, mas a de Deus mesmo. Deus é sujeito e toma a iniciativa de se dar a conhecer aos humanos. Essa dinâmica relacional divina se caracteriza pelos seguintes elementos:
a) Irrupção do divino no mais fundo do "eu" humano (aparecendo como novidade e surpresa).
b) Alteração desse centro profundo humano trazendo conseqüências éticas (a pessoa fica "afetada" e tocada na sua afetividade: algo começa a se mover - "moções" – nas pessoas.
c) Abertura do “eu” profundo a tudo e todos, ultrapassando toda prudência humana.

É precisamente essa abertura a Deus do centro mais profundo do próprio “eu”, que Inácio coloca como condição prévia elementar, para quem quer entrar nesse caminho interior. A plenitude dessa experiência de comunicação do Criador com a criatura se fez (e continua se fazendo!) na quênose do Filho, Jesus Cristo. Se a Cruz, perversidade máxima da depravação humana, é salvadora, então tudo pode ser mediação dessa salvação! Não existem, pois, tempos ou espaços privilegiados para a experiência de Deus. O lugar da experiência de Deus é a totalidade da vida!

Experiências religiosas acontecidas fora desse marco referencial que é Jesus Cristo poderão ter uma dimensão "numênica" (divina?), ininteligível (tão grata aos esotéricos!) e, de algum modo, conter os "semina Verbi" que tudo fecundam. A divindade escondida transparece em tudo e todos.

O diálogo de Deus com as pessoas não é tanto conceitual ou doutrinal (nossa grande tentação!), mas sobretudo vital. Este é o nosso grande desafio: responder com a própria vida ao amor de Deus! É impossível separar o próprio agir do nosso ser: "O amor deve por-se mais em obras do que em palavras" (EE 230). Os EE unem fé e vida!

A ação salvífica de Deus ultrapassa  evidentemente, os limites visíveis do cristianismo. As experiências religiosas não Cristãs apresentam-se como caminho de salvação para muitos. Antes que a Palavra de Deus fosse pronunciada ao homem, Deus já manifestara o seu amor pela criação. Antes de "ouvir" e responder precisamos amar aquele que fala!

5. Deus em tudo e todos. Toda a terra está empapada dessa água salvífica que nos chega por Jesus Cristo e invade tudo e todos. As religiões, por mais primitivas que sejam, têm valor próprio e são mediação de salvação para bilhões de pessoas. Os fiéis de tantas e tantas religiões alcançam a salvação não apesar da limitação das suas "experiências religiosas", mas nelas e por elas. Se Deus pode ser experimentado em tudo (mesmo na Cruz!), com muita mais razão nos espaços religiosos e religiões. "A Igreja Católica nada rejeita no que há de verdadeiro e santo nestas religiões" (Cf. Vaticano II, Nostra Aetate, nº 2).

A fé Cristã não se identifica com o subjetivismo do mundo esotérico e o respeita, podendo dialogar e até se enriquecer pelos valores que possam viver e conter. A salvação não depende do grau de profundidade ou consciência que tenhamos desses encontros, mas de uma decisão irreversível da misericórdia divina.

Nesse mundo misterioso de encontros e desencontros é fundamental respeitar a Deus que atua na vida de todos, mesmo que não tenham acesso explícito à revelação Cristã. O papel do cristianismo defronte às experiências religiosas é a de levar à sua plenitude o relacionamento interpessoal iniciado amorosamente por Deus e compreendido tão obscuramente pelas pessoas. No horizonte imenso do mundo esotérico Deus também pode estar presente interpelando as pessoas para encontros mais profundos e verdadeiros. Nada do que é bom, belo e verdadeiro escapa da sua presença!

Diante de Deus, todos seremos sempre eternos aprendizes!
                                                                                                                                (in Rev. Itaici/8/1992)
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