Pôr ordem na própria vida... (II)

4. O mundo das decisões ou os parceiros invisíveis. Até agora falamos da importância que o imaginário tem no processo dos EE, tendo em conta a ordenação da própria vida. Entremos, agora, no mundo das decisões tomadas inconscientemente, tantas vezes responsáveis pelo nosso agir moral. A eleição, no final da 2ª semana, nos convidará fundamentalmente a isso: decidir de um modo consciente a vida!

Antes de mais nada, uma afirmação curiosa: "Os homens costumam pensar e julgar-se apenas como homens, e as mulheres pensam e julgam apenas como mulheres, mas os fatos psicológicos mostram que todo ser humano é andrógino". O que isso quer dizer? Tendo em conta o consciente e o inconsciente, podemos dizer que dentro de cada homem (identidade consciente!) existe no inconsciente o reflexo feminino ("anima") e dentro de cada mulher (identidade consciente)! há, no seu inconsciente, o reflexo masculino ("animus"). A "anima" é o componente feminino numa personalidade de homem e o "animus" é o componente masculino numa personalidade de mulher. Tanto a "anima" como o "animus" residem nas camadas ocultas do inconsciente. O masculino e o feminino não são realidades independentes e autônomas, mas interdependentes e complementares como o sol e a lua, o dia e a noite, ou uma figura com sua sombra projetada.

A "anima" e o "animus", milenarmente escondidos e sociologicamente reprimidos, têm sido projetados e expressados numa diversidade imensa em figuras mitológicas que a literatura, arte e religião de todos os tempos e lugares, misteriosamente desenharam.

Esta complementaridade, entre a realidade consciente e seu componente inconsciente ("anima" ou "animus"), é tão importante que a maioria das decisões tomadas dependem diretamente dos componentes inconscientes e não das realidades conscientemente vividas. Evidentemente, isto é desastroso para a convivência humana e traz como conseqüência a provisoriedade e fragmentação dos relacionamentos.

É próprio da "anima" e do "animus", quando não estão em relacionamentos perceptivos com suas realidades conscientes, projetar-se estupidamente em outras pessoas. Quando isto acontece, a percepção que se tem fica sempre alterada e desenfocada. O homem geralmente projeta, inconscientemente, sua "anima" na mulher e a mulher projeta seu "animus" no homem. Isso tem levado, pela sua inconsistência, a conseqüências incomuns e repetidamente embaraçosas nas decisões tomadas.

Que estamos querendo dizer? Geralmente os homens, identificados com a sua masculinidade consciente, projetam seu lado feminino (inconsciente) sobre as mulheres, e as mulheres identificadas com a sua feminilidade consciente projetam seu lado masculino (inconsciente) sobre os homens. Essas imagens projetadas constituem os "parceiros invisíveis" com os quais devemos saber conviver e relacionar. A maioria das pessoas deixam que seus componentes tomem, por si mesmos, as decisões mais importantes da vida. Isto é grave! Devemos nos relacionar adequadamente com o próprio componente e assim "animados" tomar, nós mesmos as decisões que desejamos.

Os relacionamentos podem ser assim diagramados.

1. Identidade -------       AMOR/serviço ----------         2. Identidad
do homem                                                                     da mulher


ânimo/desânimo                   atração/rejeição                  ânimo/desânimo


3. "Ánima"                             paixão/ódio                            4. "Ánimus"

       
Somos chamados a nos relacionar conscientemente com AMOR nas nossas identidades pessoais reais (homem e mulher), sempre pobres e limitadas. O AMOR acolhe sempre incondicionalmente o outro na sua realidade, sempre limitada. Como isto não é nada fácil, freqüentemente movimentam-se, ao mesmo tempo, outros relacionamentos ocultos fantasiosos, inconscientes, de atração ou rejeição entre a "ánima" de um e a realidade pessoal feminina do outro e vice-versa. Estes relacionamentos sentidos, mas dificilmente percebidos, sempre são desenfocados positivamente (atração) ou negativamente (rejeição), impedindo relacionamentos conscientes e adequados. Estas projeções sempre são irreais pelo desenfoque que carregam! No entanto, o fator mais poderoso e perigoso é o relacionamento superprojetado e profundamente desenfocado entre os componentes: paixão ou ódio. Aí, é como se o "ánimus" da mulher e a "ánima" do homem estivessem irremediavelmente atraídos (apaixonados!) ou, pelo contrário, visceralmente rejeitados (ódio).

Tanto a "ánima" como o "ánimus" podem agir como um "anjo" ou um "demônio". Eles têm seu lado escuro e negativo podendo destruir as pessoas quando estas consentem ser possuídas por estas fúrias tenebrosas dos seus sentimentos doentios.

O primeiro passo para nos libertar dos efeitos negativos da "ánima" ou do "ánimus" consiste em reconhecer a sua presença. Quando uma figura do inconsciente é negada, rejeitada ou ignorada, ela se volta irremediavelmente contra nós, mostrando muito mais o seu lado negativo e agressivo. Pelo contrário, quando a acolhemos e compreendemos, seu lado positivo tende a aparecer e ficar a nosso favor como fonte de criatividade e de vida.

É preciso compreender que nossa vida consciente repousa no vasto mar do mundo inconsciente, a respeito do qual conhecemos muito pouco. Quantos arquétipos presentes no inconsciente coletivo, se manifestam através das elaborações míticas e das nossas experiências espirituais e místicas! Esse mundo interior tem dimensões históricas e afetivas ilimitadas! Como é possível rezar ou fazer um caminho interior, como o dos EE, sem ter em conta esta realidade e potencialidade imensa? Como descuidar o relacionamento com nosso componente sem correr o risco de se deixar levar pelas suas decisões desenfocadas e condicionadas? Como tentar ordenar a própria vida, com os valores contemplados no Evangelho, sem perceber que dentro de nós existem "parceiros invisíveis" que também precisam ser evangelizados e ordenados?

Quantas pessoas se enrolam afetivamente por desconhecer toda esta realidade profunda e complexa! E uma vez conhecida, quantas coisas se explicam e aclaram!

As decisões, já o dissemos, devem ser tomadas no nível consciente, com a ajuda do inconsciente. O contrário (decisões tomadas pelo componente) seria uma temeridade e, mais tempo menos tempo, passada a febre da paixão ou da atração cai-se irremediavelmente na realidade do sonho que acabou. O amor, pelo contrário, manifesta-se na pobreza das realidades humanas e sempre está disposto a acolher e doar-se gratuitamente. Como Deus fez conosco (amou-nos na nossa pobreza e limitação!) assim também nós o devemos fazer: amar incondicionalmente o outro, manifestado sempre na sua pobreza e limitação! Não há outra forma de comunicação ou de crescer juntos! O amor nunca acabará!

5. Deus nos conduz para a interioridade.
Deus nos conduz para a profundidade! É aí, na realidade mais pura e honesta, que nos quer encontrar. Ele nos conduz para si mesmo! Durante a primeira parte da vida (a juventude!) freqüentemente passamos preocupados com tudo o que é exterior: corpo, dinheiro, poder, prazer etc., ficando, excessivamente ocupados e preocupados, com o que é material e superficial! Vive-se como se outras dimensões não existissem! Alimentando essa dicotomia recolhe-se secura, desordem, vazio, neurose, perda do sentido da vida e morte.

Todas as formas de profundidade e integração com o inconsciente, alimentadas secularmente pelos nossos antepassados (oração, sonhos, visões, rituais, experiência religiosa, etc.) são menosprezadas pela mentalidade moderna como primitivas, fantasiosas e superficiais. Cortaram, assim, as próprias raízes, desligando-nos perigosa e mortalmente da parte mais profunda de nós mesmos. Este isolamento da vida interior é grave e certamente fonte de numerosas desordens, divisões, egoísmos e neuroses. A segunda idade da vida (entre os 40 e 50 anos!) inverte essa situação. O interior profundo do homem se apresenta por todos os lados! O que antes se ignorava, agora se impõe pela sua força e natureza. Todos devem viver a vida interior de uma forma ou de outra. Consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, mais cedo ou mais tarde, o mundo interior cobrará exatamente o que lhe é devido se não for convenientemente valorizado, compreendido e integrado!

A dinâmica da vida, com seus altos e baixos, nos leva para o profundo e nos configura com Jesus. Contudo, uma forma privilegiada para nos aproximar, adequada e conscientemente desse reino interior, são os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. Os tempos de oração (meditação, repetição, contemplação, aplicação dos sentidos), o silêncio, os exames, a própria liturgia, o discernimento das "moções" e a partilha do exame da oração com o orientador dos EE, predispõem para sair da parálise superficial da própria desordem e começar a se deixar levar e dirigir pelo dinamismo da Vida e do Espírito.

Sempre que ignoramos esta realidade profunda, do mundo interior e inconsciente, ele encontrará o jeito de chegar de algum modo à nossa vida, manifestando-se, provavelmente, de forma patológica com sintomas psicossomáticos, compulsões, depressões e neuroses. Se queremos realmente "ordenar" em profundidade a própria vida e o meio ambiente onde habitamos não há outra forma do que nos relacionar adequadamente com o inconsciente.

Os EE, com o processo colocado e a experiência profunda experimentada, se apresentam como um ótimo instrumento de integração e vida. Caminhando para a interioridade, mergulharemos muito mais coerentemente na exterioridade do mundo que nos rodeia!

O racionalismo reinante encaixotou, em coordenadas cartesianas rígidas, a experiência espiritual do nosso horizonte, toda dimensão mística e contemplativa. A alternativa psicologicista afoga o homem no próprio homem, alienando-o da sua dimensão transcendente e política. Os EE propõem, pelo contrário, um maravilhoso diálogo entre a liberdade de Deus e a liberdade do homem, entre o interior e o exterior, entre o Espírito e a matéria.

(Publicado na Rev. ITAICI 16/1994)
NB. Deixe os seus comentários...

3 comentários:

  1. Excelente texto, Pe.Ramon, que nos mergulha na profundidade dos EE. Como o senhor mesmo escreve " Os EE, com o processo colocado e a experiência profunda experimentada, se apresentam como um ótimo instrumento de integração e vida. Caminhando para a interioridade, mergulharemos muito mais coerentemente na exterioridade do mundo que nos rodeia!".
    É isso que tenho experimentado após fazer os Exercícios.
    Lylia

    ResponderExcluir
  2. O texto ajuda-nos a tomar consciêcia é muito claro mas, como se trata, de situações profundas, necessitamos ler, e depois ir interiorizando.
    Obrigada Pe. Ramón, por partilhar um conteúdo, que muito poderá nos ajudar.

    ResponderExcluir
  3. Eu nem sabia que tinha " ánima"? Preciso me conhecer melhor...

    ResponderExcluir