Diálogos pertinentes entre a psicologia e a espiritualidade...

Buscando viver a verdade...
 

JR: Comecemos diferenciando a 'experiência religiosa' da 'experiência de Deus' na vida de uma pessoa. A primeira, como aproximação ao sagrado, depende da iniciativa humana que se achega das “coisas” divinas para tirar delas algum benefício. A pessoa não está interessada nem um pouco em Deus, mas em si mesma, nem deseja manter um relacionamento com o sujeito divino, mas somente ambiciona as 'coisas' divinas que poderão lhe advir ou ajudar. A 'experiência de Deus', pelo contrário, é iniciativa de Deus que se aproxima da pessoa humana para se relacionar com ela. É uma parceria ou aliança entre dois sujeitos: o divino e o humano. A experiência religiosa é fundamentalmente manipuladora; a de Deus, encantadora. 

A 'experiência religiosa' aqui entendida é, por sua natureza, interesseira e voltada para si mesmo, podendo ser campo propício para o exame e o estudo psicológico, sobretudo quando extrapola os seus resultados. A 'experiência de Deus' abre a pessoa para a transcendência e o confronto com Deus. Pode ser objeto do exame psicológico no que ela tem de fenômeno humano ou quando, sendo falsa, é fruto da própria imaginação ou projeção. Sendo verdadeira, a experiência de Deus humaniza e socializa, realizando quem a experimenta.

A 'experiência religiosa' (tradições, ritos, formas) faz parte deste mundo imenso da imaginação, impactando certamente os sentimentos. Ela é comum a muitas religiões e denominações. É o interesse humano aproximando-se das coisas divinas, para manipulá-las em benefício próprio. Esta experiência, aparentemente positiva, é perigosa quando fanática ('o corpo é mau; o espírito é bom...' Guerra santa; cruzadas...), pois reduz o ser humano aos objetos que pretende. Muitos 'fenômenos' (visões, alocuções, alucinações, etc.) são projeções do lado mais escuro da mente humana, acordando sentimentos e emoções (medo, angústia, prazer, etc.) anteriormente escondidos.

A 'experiência de Deus', parecida com a religiosa, é diferente na sua orientação e conteúdo. Aqui, a iniciativa é de Deus que irrompe gratuitamente no humano, convidando-o a ser mais sujeito de si mesmo. Os 'fenômenos espirituais', quando acontecem, não são absolutamente importantes, por mais estranhos que eles possam ser ou parecer. O que importa é a pessoa humana tocada por Deus e a sua possível resposta. A experiência relacional entre esses dois sujeitos, o divino e o humano, é fundamental. Este relacionamento inter-subjetivo é bidirecional: O Criador age na criatura e a criatura no seu Criador e Senhor. Esta  ação imediata de Deus é certamente mística.

É verdade que este tipo de experiência não isenta a pessoa de suas limitações e contradições até profundas, mas consegue experiênciar e viver cada vez mais e melhor sua pertença humana aberta ao infinito. A consciência da própria limitação acolhida, faz viver com maior profundidade e sentido a própria vida. 

Na Igreja há, atualmente, uma suspeita generalizada para as experiências espirituais ou místicas. Aceita-se tranquilamente o amor de Deus para conosco, mas achamos erradamente impossível que o nosso amor possa chegar a Deus e, assim, o fazemos chegar apenas ao nosso próximo.

Psicólogo. Fale um pouco de como você vê, enquanto diretor espiritual, as implicações psicológicas que emergem da e na problemática religiosa, tanto em casos de 'gente normal' quanto no de 'pessoas psicologicamente problemáticas'. 

JR: A sociedade, família e a vida religiosa estão passando por momentos significativos de grandes mudanças paradigmáticas, de busca de sentido, redefinição e pertença. Neste horizonte amplo, alguns (os mais fracos psicologicamente?) perdem o rumo, as expressões e até a própria identidade, espalhando sintomas que têm significados negativos e até nefastos. 

As pessoas psicologicamente 'problemáticas' costumam ser e aparecer como estranhas à primeira vista e entrevista. Observando este interlocutor 'problemático', suas palavras, gestos e comportamentos, podemos perceber facilmente algumas irregularidades explicitadas:

  • Geralmente o modo de vestir e de se arrumar é largado e sujo, mostrando pouca auto-estima e um abandono acentuado de si mesmo.
  • O modo de se relacionar é inexpressivo e carente, manifestando gestos lentos e olhar semi-perdido ou, pelo contrário, faz gestos teatrais e exagerados. O modo de assentar costuma ser afundado e depressivo, quase que tocando no chão.
  • A fala costuma ser repetitiva e confusa... Quando falam de Deus, este parece ser terrível e espantoso, projetando provavelmente a imagem castradora do pai ou de seu super-ego. Às vezes, falam de suas 'alucinações religiosas' ('Nossa Senhora me disse... Um anjo me falou...', etc), para eles 'verdadeiras', mas sem um referencial objetivo com a própria vida. Essas 'obsessões' são geralmente 'espirituais', mas também podem ir misturadas com perversões sexuais (pedofilia, sadismo, masoquismo, fetichismo religioso, etc), mantendo a pessoa num horizonte pequeno, teimoso e reduzido pela duplicidade de vida: “de dia parece um santo; à noite vira um demônio...”
Estas pessoas quando evidenciam alguns desses sintomas devem ser encaminhadas a um psiquiatra, para obter a ajuda médica necessária. A orientação espiritual, evidentemente, não é possível nessas condições.

Mais difícil de perceber numa primeira entrevista são os casos de gente aparentemente “normal”. Quando há perturbações profundas, essas afloram com o passar do tempo, pois não se consegue ser 'normal' o tempo todo. As dificuldades da vida expõem à vista de todos, a nossa interioridade ferida e fragmentada. Eis alguns desses possíveis sintomas que podem surgir com o tempo nas pessoas aparentemente normais:

  • Exibicionismo. Chamam continuamente a atenção sobre si, seja pelas suas qualidades ou pelas suas carências; precisam ser constantemente o centro das atenções.
  • Bipolarismo. As pessoas sofrem momentos de grande euforia com outros de profundo isolamento. Alegria e depressão, atração e rejeição, amor e ódio podem aparecer nos seus relacionamentos em pouquíssimo tempo e em graus elevados.
  • Tergiversação. Alguns não querem ser transparentes nos seus relacionamentos. Falam muito, mas não dizem nada de significativo.
  • Fuga dos 'superiores' e formadores. Outros têm grande dificuldade de falar espontaneamente com os superiores e diante deles ficando, geralmente, paralisados. Sabem, contudo, manipular com palavras e gestos os iguais ou os mais carentes do grupo.
  • Vida espiritual de 'formas e fórmulas', isto é de aparências. Há um divórcio entre fé e vida. A fé professada não tem incidência alguma sobre os seus atos.
  • Vida desordenada. Alguns facilmente exageram no uso do álcool, fumo, drogas (lícitas ou ilícitas), celulares e... computadores! O seu habitat natural (quarto, escritório, mesa de trabalho...) é totalmente bagunçado e desordenado, revelando a sua interioridade parecida. Geralmente ocupam-se de muitas coisas e não terminam bem nenhuma.
  • Psicossomatização. Outros apresentam algum tipo de alergia, tique nervoso, úlcera, cansaço fácil, insônia, ansiedade, depressão, quando os desafios se fazem mais presentes.
  • Não se enxergam. Há aqueles que, freqüentemente têm relacionamentos conflitivos com os mais próximos (família, comunidades) experimentando sentimentos desgastantes (agressividade, dependência, isolamento...), sem se sentir responsáveis por eles.
Estes orientados aparentemente 'normais' quando conseguem dar um tempo freqüente para orar pessoalmente, conseguem crescer humana e espiritualmente. Quando não, um acompanhamento psicológico adequado ajudará a que a pessoa se descubra, conheça e assuma mais profundamente os seus mistérios. A 'problemática religiosa' tem, geralmente, suas raízes numa problemática afetiva não conhecida ou mal resolvida.

Psicólogo: O que você usa da 'psicologia' na orientação espiritual?

JR: Nos casos patológicos evidentes (pessoas psicologicamente problemáticas), procuro motivar para que o orientado busque um acompanhamento psicológico ou psiquiátrico adequado. Nos outros casos, aqueles 'aparentemente normais' se são capazes de manter uma vida de oração freqüente, são acompanhados espiritualmente com sucesso. 

Evidentemente, há pessoas que não conseguem fazer uma orientação 'espiritual', pois quando falam expressam continuamente sua problemática emocional e/ou psicológica alterada ou exacerbada. Outros são até capazes de usar alguns termos 'espirituais', mas não dizem nada de si mesmos ou da sua experiência humana mais profunda. É nesse humano mais profundo que podemos encontrar o sentido da vida, a consciência do Absoluto. Quando se consegue chegar a esses patamares, a orientação espiritual flui suave e docemente. 

Na orientação humano/espiritual tento usar o sentido comum, a observação, o escutar e ver se há adequação do que se diz com o que se faz... Não dou muita importância aos possíveis 'fenômenos espirituais', pois se são verdadeiros, humanizam e socializam. Se os tais 'acontecimentos aparentemente extraordinários' não humanizam, nem socializam, podemos desconfiar que, provavelmente, fazem parte de uma imaginação alterada e de uma fantasia exaltada. O amor/serviço é o sinal mais claro da normalidade e integração de uma pessoa e, evidentemente, da presença de Deus nela. 

Quais as diferenças entre a terapia e o acompanhamento espiritual? Ambas buscam a maior transparência possível no dirigido usando, porém, metodologias próprias. Existem algumas semelhanças: ambas contam com a ajuda de uma pessoa especializada (terapeuta, no primeiro: orientador espiritual, no segundo); utilizam a “palavra” como veículo de expressão; partilham experiências profundas (o primeiro, trabalha a partir das empatias ou transferências do cliente com o analista, até internalizar a consciência crítica nelas; o segundo, analisa a empatia ou transferência ocorrida no seu encontro e relacionamento com Deus), etc. Nos dois ocorre um processo experiêncial que deverá ir se desenvolvendo gradual e positivamente no seu processo vital ou no decorrer das diversas etapas ou 'semanas', no caso dos Exercícios Espirituais de S. Inácio de Loyola.

Psicólogo: Como você foi descobrindo a importância da dimensão 'psicológica'?

JR. Primeiro, na compreensão e conhecimento de mim mesmo. Sem uma percepção adequada de si é impossível ir muito longe. Facilmente projetamos as nossas misérias nas palavras pronunciadas e nos gestos realizados! Outra descoberta deu-se na orientação humano/espiritual mantida, por mais de 15 anos, na formação inicial de vocacionados para a vida religiosa. Nela, percebi que uns não conseguiam falar da sua experiência de Deus, não porque não a tivessem, mas porque a experiência humana desordenada falava mais forte; outros tinham bloqueios nos seus relacionamentos parentais e não conseguiam ser normalmente felizes nem consigo, nem com os outros, nem com o “Deus” que diziam amar e acreditar. Tudo isso me foi questionando profundamente.

O campo da 'espiritualidade' esbarra, naturalmente, com o da psicologia e o da moral. Inácio de Loyola foi conhecendo, por experiência e observação pessoal e alheia, a profundidade da 'alma' humana. Este conhecimento é infindável, pois quanto mais se entra e se experimenta, mais longe estamos de entendê-lo e dominá-lo!

Evidentemente que tudo isso implica emocionalmente, mesmo quando não queremos que isso aconteça. As 'resistências' experimentadas fazem parte tanto da observação e leitura psicológica quanto da orientação espiritual. As resistências 'psicológicas' pertencem ao mundo das emoções; as 'espirituais' ao das 'moções'. A primeira fica em nós, a outra nos coloca em movimento e serviço.

Parece que a área 'espiritual' deixa transparecer (projeção?) mais e melhor, nossa realidade emocional sentida ou reprimida, subjacente a todos. Nada do que é humano deve nos assustar, pois somos muito complexos e diversos, tanto na identidade quanto na expressão da nossa realidade expressamos o que somos e sentimos. Uns viverão negativamente; outros positivamente. É assim que a humanidade caminha. 

Psicólogo. Que problemas chamam mais sua atenção?

JR: Além dos que já foram apresentados anteriormente, surgem outros próprios da realidade humana complexa e que, às vezes, espantam até os seus próprios autores e parceiros. Inácio de Loyola sendo um 'mestre da suspeita' tentava, contudo, salvar sempre a proposta do próximo...

As fronteiras do certo ou errado não são muito claras, nem bem definidas nos dias de hoje, apesar das propostas 'paternas' (super-egóicas?) do magistério ordinário. Hoje correm paralelos outros alinhamentos comportamentais mais subjetivos (prazer, desgosto, atração, rejeição, etc.) do que “morais”, e que não deveriam tanto nos assustar, nem poderíamos tão facilmente excluir.

Muitos problemas (realidades?) estão presentes no meio de nós, não por sermos religiosos ou vocacionados, mas por sermos humanos. O que fazer? As limitações que carregamos nos pertencem não por sermos 'religiosos', mas humanos. Contudo, a fé nos coloca de um modo mais misericordioso diante de qualquer realidade humana sentida ou experimentada.

Sabemos que as coisas incomodam menos quando conscientizadas e assumidas. A regra de ouro para não se assustar com nada do que é humano pode ser esta: 'Nada te turbe, nada te espante!...' Outra? 'Acolhe o outro como ele gostaria de ser acolhido...' Isto exige uma nova sensibilidade.

Conviver bem consigo e com os outros é uma sabedoria e um aprendizado que não depende da qualidade de nossas virtudes ou defeitos. Somos visceralmente incoerentes e pecadores, vasos de argila, nas mãos amorosas e misericordiosas do Pai que nos chama, continuamente, a construir a filiação divina e a fraternidade universal. Ele pode, e muito bem, fazer em nós e por meio de nós a sua obra de salvação.

Finalizando. Ninguém é perfeito. É possível passar pela vida e ser feliz com as limitações que temos. A humildade, a verdade e o amor enriquecem sempre o sentido da nossa vida. A espiritualidade se não me fez mais 'espiritual', espero que pelo menos me tenha feito muito mais humano!

Uma pergunta: Você gostaria de acrescentar alguma outra coisa sobre este assunto?

Um comentário:

  1. Texto muito bonito porque mostra-nos a beleza de nossas humanas fragilidades.

    Obrigada, Padre Ramon!

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