Irmão Vicente Cañas SJ (1939-1987), mártir da causa indígena...

“Se o grão de trigo não morrer... ” (Jo 12, 24)

“Uma vez sepultado; duas vezes morto!”[1] Trinta anos já se passaram do assassinato terrível do irmão jesuíta Vicente Cañas[2]. Nosso esquecimento, hoje, seria matá-lo por uma segunda vez. Não queremos que isso aconteça!  Façamos memória, viajemos no tempo, e lembremos brevemente os fatos..

Vicente (dizem que esse nome significa “vencedor!”) aos 22 anos de idade, cheio de vida e sonhos, deixa a casa paterna e entra no noviciado da Companhia de Jesus, na Espanha. Lá, apaixonou-se pela pessoa e pelo projeto de Jesus Cristo que o convidava a sair de si mesmo e ir para terras mais distantes... No relacionamento com Deus, não se pode ser mesquinho, pois quem não dá tudo, não deu nada!

Deixando-se conduzir pela palavra interior de Deus que brota repetidamente dentro dele, o jovem irmão jesuíta Vicente embarca para o Brasil. Logo o encontramos na Missão Anchieta (1969), no meio do povo indígena, “os mais pobres de entre os pobres”. Com eles viverá por quase 20 anos! Por fim, foi encontrado morto, nu, debruçado sobre o solo, como um pobre índio, enfeitado apenas com os colares, pendentes e braceletes dos “Ena-wené-nawé”, tribo do estado do Mato Grosso. A vida o foi configurando cada vez mais com o Crucificado. “Por meio da morte, Ele venceu a morte. Por isso, ninguém mais morre só; Cristo morre com aquele que morre, para ressuscitá-lo com Ele![3]

A tribo dos “Ena-wené-nawé” foi contatada, por primeira, vez em 1974. O Ir. Vicente, pioneiro da Missão, lá se encontrava. Por amor “fez sua tenda no meio deles”. Com eles pescava, dormia e caçava. Mais ainda, Ir. Vicente, sem perder a identidade de homem consagrado a Deus, seguiu os passos de insignes jesuítas anteriores que, sem nenhum remorso deixaram penduradas suas batinas romanas (“santo hábito!”) para se vestirem com as roupas típicas das culturas e países onde estavam[4]. E isso, bem antes do Concílio Vaticano II! Irmão Vicente, seguindo essa tradição secular, “vestiu-se” de indígena, no meio de seus irmãos indígenas. “A evangelização não é possível sem a inculturação!” dirá nossa Congregação Geral 34ª em janeiro de 1995. Fruto dessa inculturação foi a morte recebida; ele tombou silenciosamente no meio do mato como tantos homens e mulheres liquidados.

O Ir. Vicente foi morto por um instrumento cortante que o atravessou, violentamente, à altura da boca do estômago. Morreu ensanguentado à porta do seu pobre barraco. Quem o matou? Não foram os indígenas “selvagens”; pois o tinham como um da tribo. Não foram os “pagãos” que o mataram, mas os brancos “cristãos” que o liquidaram por um punhado de dinheiro: “trinta moedas” miseráveis. Ó, ironia da vida! Os “silvícolas” o respeitaram; os brancos “civilizados”, covardemente o assassinaram.

O desenvolvimento histórico é um longo e difícil processo (e passagem!) do nível “zoo-humano” (animal-humano) para o “Teo-humano (divino-humano). Esta evolução, evidentemente, não é só externa e cultural, mas sobre tudo interna e ética. A convivência solidária e fraterna é o sinal mais adiantado deste processo. A contrária, por desgraça, também é verdadeira!

Quem matou ou mandou matar o irmão Vicente tinha uma intenção perversa bem definida: fazer desaparecer da face da terra toda a tribo dos Ena-wené-nawé, para apossar-se de suas terras e madeiras de lei centenárias. Despojar, ainda mais, os pobres do pouco que restou. O Ir. Vicente se opôs energicamente a tamanha vilania pagando, com a  própria vida, a vida dos outros. “Quem não dá tudo, não deu nada!”

O cume do amor é morrer para a própria expressão cultural por amor do outro. O Irmão Vicente assim o fez! Despojou-se da sua cultura ibérica e acolheu o indígena como ele era. Não só o acolheu como também o amou na sua pobreza existencial. O amor fez emergir o melhor de si mesmo.

A morte do Irmão jesuíta Vicente Cañas abre muitas perguntas: Por que um jovem doa sua vida a Deus e se arrisca tanto? O que move o coração dessas pessoas?

A dedicação e generosidade “full-time” vivida pelo irmão Vicente Cañas favorecerá o despertar de novas e promissoras vocações missionárias. Outros jovens, eles e elas, sentido apelo semelhante, colocar-se-ão a caminho e chamarão às nossas portas dizendo: “Eis-me aqui! Envia-me!” O Ir. Vicente não foi o primeiro a dar esse passo, pois antes dele outros já o fizeram; e também não será o último.

Quem são estes e de onde vieram? Estes são os que saíram da grande tribulação e lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro!” São os grandes vencedores, pois venceram corajosamente a si mesmos. Estas pessoas de fé (apenas do tamanho do grão de mostarda!), com vontade de ajudar são imprescindíveis nas nossas comunidades

Sangue de mártires, semente de novos cristãos!” O sangue foi derramado copiosamente; os frutos, com certeza, misteriosamente irão aparecer. Uma árvore frondosa foi cortada sem piedade; mas, outras estão já brotando.

Irmão Vicente Cañas perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem e roga a Deus por todos nós.






[1] “Semel sepultus, bis mortuus” Cfr. Padre A. Vieira citando D. Escoto no seu  “Sermão de Quarta-feira de Cinzas”,  c. III.
[2] Vicente Cañas nasceu em Albacete (Espanha) em 1939 e entrou no noviciado da Companhia de Jesus em 1961. Veio para o Brasil logo depois, fazendo parte da Missão Anchieta, no meio das nações indígenas do país. Seu cadáver foi encontrado no dia 16 de maio de 1987. Segundo os médicos legistas, o  assassinato foi entre os dias 5 e 6 de maio do mesmo ano.
[3] P. Eudokimov, l’art de l’icône. Theologie de la beauté. Paris, 1972, 290.
[4] Assim diversos padres e irmãos jesuítas como Pe. Mateu Richi (1552-1610) chegado à China (1583) se vestiu de “mandarim” para abrir caminho ao seu trabalho missionário. Pe. De Nobili, na Índia,  Ir. Bento de Goes (1562) disfarçou-se de mercador armênio para entrar no império do Grão Mogol.  Pe. Abraham de Georgiis (1563) e Pe. Pedro Paez (1564) vestiram-se de mercadores armênios para entrar e evangelizar a Etiópia.  Pe. Francisco Pacheco (1566-1626) vestiu-se com as roupas típicas dos japoneses da época para evangelizar o Japão. Pe. João de Brito (1647-1693) vestiu-se de “pandará-suami”, isto é, de penitente hindu, podendo assim tratar com todas as castas da Índia. Quase todos eles foram martirizados, brutalmente assassinados.

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