7. DIFERENTES TIPOS DE ESCRITURA: TEXTOS SOBREPOSTOS... (cf. Pe. Ulpiano V. SJ)


Somos uma carta de Cristo, escrita pelo Espírito do Deus vivo. A vida de Jesus tornou irreversível o amor de Deus por nós. O Espírito de Deus foi derramado sobre toda carne e age no fundo do coração de todo ser humano, com "gemidos", sugestões, movendo a todos na direção dos valores do evangelho.

Nossa realidade: graça e pecado, luz e sombras; somos vasos de argila carregando um tesouro. Na leitura desta realidade humana, vamos encontrar inevitavelmente textos sobrepostos: textos claros escritos pelo Espírito Santo, e textos obscuros e sombrios, escritos por outra mão. A superfície da terra apresenta uma paisagem homogênea de terreno, mas desde que comecemos a cavá-la, num corte vertical, descobrimos camadas superpostas de aluviões. Assim a vida de cada um. 

A ação do Espírito encontra-se na vida de todo ser humano, por mais devastada que se apresente a superfície, por mais que a aparência nos fale de uma distância de Deus. O Orientador espiritual, como teógrafo, deve estar atento a este sopro de vida, na história do exercitante, ainda que pareça muito tênue.

Esta atenção paciente e perseverante deve ser tanto maior quanto a expressão da vivência profunda faz-se às apalpadelas. No meio de muito lixo e entulho pode aparecer, subitamente, uma pepita de ouro que o teógrafo não deixar de colher com respeitosa reverência pela ação do Espírito que aí se manifesta. 

Igual atenção deve ser dada a diferentes fases ou períodos da vida. Em certos momentos as marcas de Deus podem ter sido fortes, e em outros, as marcas do pecado. Às fases de intenso fervor sucedem-se fases de crises existenciais, formando os altos e baixos de nossa resposta humana ao Deus fiel. Nunca o teógrafo encontrará  um texto retilíneo; seu papel é encontrar o veio de ouro que perpassa no meio da montanha de areia, cascalho e segui-lo.

Quando Inácio percebe que as marcas de Deus sobre a sua vida podiam ser lidas, sentiu como que seus olhos se abrindo e ficou maravilhado com o que começava a enxergar: "até que uma vez se lhe abriram um pouco os olhos e começou a maravilhar-se desta diversidade" (Aut. 8). Esta foi sua primeira experiência de ciência espiritual.

"Recebida não pouca luz desta lição, começou a pensar mais deveras em sua vida passada e quanta necessidade tinha de se penitenciar dela" (Aut. 9). Compreendida esta primeira lição, Inácio é levado a pensar em sua vida passada, a ler passagens de sua vida que sente não terem sido escritas por Deus, mas por outro, e em que direção o tinham levado. 

Aos poucos, seus desejos mundanos vão se dissipando: "Já se ia esquecendo dos pensamentos passados com a força dos santos desejos que alimentava, quando uma visita do céu os confirmou desta maneira. Estava, uma noite, acordado, quando viu claramente uma imagem de Nossa Senhora com o Santo Menino Jesus. Com esta vista, por espaço notável, recebeu consolação muito excessiva e ficou com tanto asco de toda a vida passada e especialmente dos pecados da carne que parecia terem-lhe tirado da alma as imagens que antes tinha nela pintadas" (Aut.10).

Inácio usa, curiosamente, a imagem do desenho ou da inscrição, de marcas deixadas pelo mau espírito, e é capaz de olhar com tranquilidade para as páginas obscuras de sua vida que lhe causavam medo. Seu passado fora pacificado.

Inácio já consegue ler a escrita de Deus no coração. Em seguida, começa a escrever: "Vindo a gostar muito daqueles livros, ocorreu-lhe a ideia de tirar deles um resumo dos pontos mais essenciais da vida de Cristo e dos Santos. Assim, pôs-se a escrever um livro com muita diligência... Traçava as palavras de Cristo com tinta vermelha e as de Nossa Senhora com tinta azul" (Aut. 11). Inácio começa a copiar passagens dos livros tal e qual, sem ainda nenhum toque pessoal, a não ser a escolha das tintas.

No nº 18 da autobiografia, notamos algum progresso: em Manresa "determinava ficar em um hospital uns dias e anotar alguns pontos em seu livro que levava muito guardado e que muito o consolava". Já não se trata mais de copiar, mas de anotar alguns pontos, frutos de suas experiências pessoais e reflexões. Aqui temos o início da redação do livro dos Exercícios

Passamos do ler para o escrever. Inácio escreve o que vai aprendendo na "escola de Deus", e percebe que não é um caminho normal. O normal seria ter um acompanhante neste itinerário que o ajudasse a descobrir as marcas de Deus, os possíveis enganos e ilusões, e fosse introduzindo no mistério.

Nos Exercícios Espirituais Inácio não recomenda explicitamente a escrita, mas recomenda vivamente a partilha com o orientador: "É muito proveitoso que aquele que orienta os Exercícios, sem querer perguntar nem saber os pensamentos ou os pecados do exercitante, seja informado fielmente das moções e pensamentos que os diferentes espíritos despertam nele. Porque, conforme julgar mais ou menos proveitoso, pode dar-lhe exercícios espirituais mais apropriados e adaptados às suas necessidades objetivas" (EE 17).

O Orientador deve, pois, ser informado fielmente sobre as consolações, desolações e moções dos diversos espíritos. A teografia possibilita a mistagogia.

Podemos então, dizer que a verbalização das experiências é também uma maneira de escrever. O esforço para verbalizar para um outro o vivido e experimentado, é uma maneira de registrar a experiência. Pela verbalização da experiência, o exercitante entra num processo interior de escuta e atenção ao Espírito que escreve no coração. O exercitante vai tornando-se progressivamente sensível ao Espírito e registrando suas marcas.

O encontro com Deus leva a escrever uma nova história pessoal e coletiva, irradiando os valores do evangelho num mundo marcado pelas estruturas de pecado.

Um comentário:

  1. Padre Ramón, gostei muito do texto. Em minha experiência com os Exercícios Espirituais tenho dado especial atenção ao registro escrito. Por meio desse registro, sinto que ressignifico a Palavra lida e "ressoada" em mim. Abraços. Ana Luzia.

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