Aplicação dos sentidos...

A experiência como conhecimento
Encontramo-nos diante de um método de oração profundamente estudado e questionado na história da Companhia. Por ser aplicação dos "sentidos" alguns diziam que era um método de oração inferior, por não pertencer à esfera da "razão". Outros pensavam que nos encontrávamos diante de um método que nos introduzia na mais alta mística, por colocar a pessoa em contato com os "sentidos espirituais". Contudo, é bom precisar de que Inácio não fala dos "sentidos espirituais", mas dos "sentidos da imaginação".

O diretório oficial de 1599, temendo facilitar um certo iluminismo ou um misticismo alienante, não próprio da Companhia, opta pela consideração menor, isto é, a aplicação dos sentidos é um método comum de oração. Apesar dessa declaração oficial, outros autores jesuitas de renome como Gagliardi, Palma, La Puente, Alvarez de Paz, Suarez e eu mesmo, deixamos aberto o caminho dos sentidos espirituais "místicos".

A aplicação dos sentidos é própria para o entardecer do dia, isto é, quando já se fizeram anteriormente, as outras contemplações e ela exige menor esforço.

E voltamos mais uma vez sobre a imaginação. A "imaginação" é o sentido corporal interior do espírito e está dotada de sentidos internos. Quanto mais abrangente a experiência humana tanto mais é profunda e eficaz.

Inácio supera toda dualidade humana (alma-corpo), como também todo "sensualismo" (destaque do corpo!) ou "intelectualismo" (destaque da razão!) ao colocar a contemplação do divino na corporeidade e historicidade dos fatos evangélicos e da história. O místico está firmemente vinculado ao sensível e concreto, pois só aquele que é capaz de enxergar além das aparências pode descobrir a fonte que dá sentido a tudo e tudo unifica.

O texto dos Exercícios Espirituais (EE121) diz: "A quinta (contemplação) será trazer os cinco sentidos sobre a primeira e segunda contemplação", depois das duas repetições. Isso é muito importante para compreender o método inaciano. Para que a aplicação dos sentidos seja tal, todos os nossos níveis de curiosidade, inclusive o de busca devem estar satisfeitos. Embora o que se contempla nunca se esgote, mas sim os ecos que na pessoa produzem e nesse momento determinado, pois eles têm um limite.

Inácio diz que devemos "trazer os cinco sentidos". Se os trazemos é porque antes não estavam aplicados. O que até agora estava no primeiro plano (nas contemplações e nas repetições) eram nossos níveis intelectivos e afetivos, mas não a sensibilidade. Evidentemente que esta não esteve ausente durante o processo, mas o que Inácio agora quer é outra coisa. um exemplo: se alguém está aprendendo a dirigir um carro, toda sua inteligência, atenção e interesse estão voltados para o aprendizado e no dia do exame e se for aprovado, é aundo mais "sabe", mas não que tenha expereiência e segurança. Certamente ainda lhe resta um longo caminho na prática de dirigir.

A prática é importante! Uma pessoa realmente sabe dirigir quando o faz com espontaneidade; quando a própria vista, ouvido e tato estão de tal modo conjugados que reagem como devem, sem quase perceber. Essa resposta espontânea não é um passo a mais no conhecimento que se iniciou na auto-escola, mas seu clímax. Podemos relacionar esse clímax com o que Inácio chama de "conhecimento interno" que nos leva a uma entrega maior e seguimento espontâneo (EE 104).

Assim, depois das ressonâncias que a contemplação produziu (duas repetições!), falta "trazer" ainda alguma coisa, algo que precisa se incorporar ao processo e que supõe ser seu clímax.

Esta incorporação da sensibilidade é o que fará operativa e fácil a própria resposta. Nossa "práxis" não está ligada apenas a um mero saber, mas se realiza com maior facilidade quando se incorpora a sensibilidade a esse saber.

Inácio diz: "é proveitoso passar os cinco sentidos da imaginação pela 1ª e 2ª contemplação..." (EE 121). "Trazer e passar..." Em que consiste isso? Não o sabemos, como também não sabemos como se incorporaram espontaneamente o tato, o ouvido, a visão ao próprio "saber dirigir"... Mas, certamente é um fato que eles se incorporaram pela repetição!

Na nossa linguagem espontânea abundam expressões que aparece essa importância da sensibilidade. Por exemplo, quando pedimos um trabalho importante, facilmente dizemos: "pelo amor de Deus, coloca os teus cinco sentidos nisso!..." Ou quando alguma coisa desperta suspeitas, espontaneamente dizemos: "não vejo claro isto aqui..." ou "isto não me cheira bem!..." ou "não gosto nada disso; não me agrada!..." E quando alguém erra publicamente, cochichamos: "Coitado! Ele não tem nenhum tato!..." Essas expressões e muitas outras apontam para a "aplicação dos sentidos".

Nossa sensibilidade não é neutra, nem meramente passiva diante do que vivemos. Sensibilidade passiva significa perdida, não orientada ou integrada; sensibilidade ativa significa orientada, encontrada... Nos humanos, tudo tem sentido e orientação! Você já percebeu que nos mexe mais  aquilo que toca nossa sensibilidade?

Enquanto a sensibilidade não adquira uma "orientação" evangélica, a resposta espontânea será ïnsensata", sem sentido, distraída e não evangélica. Nossa espontaneidade nos revela!

A afetividade (emotividade, sentimentos...) não é a sensibilidade da qual falamos. A afetividade é mutável e instável, enquanto que a orientação da sensibilidade é ativa e estável, indo além do que se possa sentir ou não nesse determinado momento. Se as nossas grandes opções, como o seguimento de Jesus, se expressam só na emotividade e não numa nova sensibilidade ativa (orientada para o Evangelho!), serão passageiras e indicadoras de experiências superficiais.

Na oração com aplicação dos sentidos, Inácio não privilegia ou exclui algum, pois os cinco devem ser "trazidos" e "passados", desde o mais distante e extrínseco (a audição!) até o mais interno, intenso e visceral: o tato (abraçar, beijar ...)

A imaginação funciona melhor quando existe emoção e sentimento. O Jesus histórico nos leva à experiência sensível (histórica!) da divindade. O sentir corporal e o espiritual se adéquam numa perfeita unidade. É impossível separar o que pertence à estrutura ontológica do ser humano! Só experimentamos "corporalmente" (pelos nossos sentidos!) a divindade de Jesus! Chegamos a Deus por meio da humanidade histórica de Jesus. É na matéria que encontramos Deus e na limitação que experimentamos a presença do seus Espírito! Se Deus "desceu" a nós na encarnação, não precisamos "subir" muito para encontrá-lo! Nosso Deus é um Deus "encarnado" e Ele está verdadeiramente no meio de nós. A mística mais profunda acontece no meio das realidades mais corriqueiras!

A aplicação dos sentidos nos querem colocar, pois, nessa dimensão humana e ao mesmo tempo divina. É com o “ver”, "ouvir", “sentir”, “degustar” e “tocar” que podemos nos abrir ao mistério do sentido último da vida: Deus. Quem experienciou a aplicação dos sentidos será um "contemplativo na ação" e uma pessoa mais humana com todos. (in Rev. ITAICI/12/1993)

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3 comentários:

  1. só a critica ao espontaneísmo que não gosto. para mim, uma atitude sempre pensada e calculada, facilmente pode se tornar técnica e vazia.

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  2. Um texto claro e que nos ajuda a perceber nossos sentidos.

    Obrigada!

    Abraços e beijos fraternos, Leandra.

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  3. Joia preciosa, pe. Ramón.
    Estou terminando o doutorado de Teo na Faje. Estudo a autocomunicação de Deus, em Rahner, e tenho um subcapítulo sobre os estudos de Rahner sobre os cinco sentidos e vai da patrística a Boaventura. Qual não foi a minha surpresa quando vi que houve - poucos, mas houve - estudos relacionando os cinco sentidos em Boaventura à aplicação dos sentidos em Inácio. Seu texto foi um presente para mim. Vou mencioná-lo em minha tese.
    Abraço, Jussara

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