Contudo, mais cedo do que se imagina, chega o tempo em que o “eu” é obrigado a olhar, não tanto para fora, mas para essa outra realidade, imensa e profunda da vida interior. Não é fácil abrir os olhos para a existência desse imenso mundo submerso, desconhecido e excluído. Dificilmente podemos manipular o que não vemos, mas, queiramos ou não, ele nos habita apesar de nossa ignorância e desprezo. Eis como uma religiosa definiu, perplexa, a descoberta dessas profundezas do seu mundo interior:
“... Tenho 44 anos de idade. Neste período da minha vida, sem saber como e por que sinto-me totalmente sem ânimo. Nunca pensei que poderia chegar à situação em que me encontro. Não tenho forças para nada; falta-me coragem, ando cansada de tudo e de todos. Sinto como se o mundo fosse outro e as coisas ao meu redor um obstáculo. Sinto-me incapaz de assumir qualquer trabalho, mesmo aqueles que sempre fazia sem medir esforços. E o viajar? Parece brincadeira, mas aquelas viagens que para mim sempre foram tranqüilas, ultimamente estou encontrando dificuldades incríveis. Os pensamentos que passam pela minha cabeça são: onde está minha passagem?... Vou perder o ônibus!... Vai ter um desastre e vou morrer!... Quantas perguntas tolas, sem fundamento; mas elas entram na minha cabeça e me paralisam feito uma boba...”
2. A Crise do “Demônio Meridiano”. As perguntas não-respondidas, os sentimentos de insegurança, a incerteza e confusão surgem vigorosamente neste determinado período da vida. Perde-se um tempo precioso e um monte de energias para se situar, adequadamente, e poder acompanhar o ritmo de vida anteriormente vivido. É a crise do “demônio meridiano”. “Demônio”, pois esse ser mesquinho e perturbador atua com astúcia traiçoeira, na fraqueza e confusão experimentada. “Meridiano”, porque acontece no meio-dia da vida, quando “o calor e o cansaço” são mais fortes. Esta etapa começa em torno dos 40 anos, podendo se estender até os 50 ou 55 anos de idade. Sintomas? Os mais diversos. A pessoa sente-se perdida, perplexa, sem entusiasmo e generosidade. Surgem do porão do inconsciente velhos “personagens”, até agora reprimidos, desprezados e abandonados, gerando perturbação, cansaço, monotonia e mediocridade.
3. Olhando para fora, reprimindo o de dentro. A primeira parte da vida tentamos, a todo custo, construir o próprio “eu”. Para isso, reprimimos uma diversidade de sentimentos e emoções que, à primeira vista, nos pareciam equívocos. Imaginávamos que, desse modo, eliminaríamos para sempre todo tipo de tendências e sentimentos indesejados, incômodos e perturbadores. Coitados de nós! Nada do que incomoda se desfaz, mas apenas se remprimiu e empurramos, como trastes velhos e para porões mais profundos, registros negativos que estavam escondidos, mas bem presentes e atuantes.
Essas realidades escondidas e reprimidas, vêm à tona espontaneamente nesta segunda fase da vida. Ninguém consegue fugir de si próprio por muito tempo. A vida nos convida a construir sempre a verdade e olhar, face-a-face, as próprias “sombras” rejeitadas, para integrá-las no nosso consciente, completando o nosso verdadeiro “eu”. Levamos tesouros em vasos de barro!
É preciso entender bem esta etapa para não sucumbir nela. Entrar nesse período da vida, a meia-idade, corresponde a um novo nascimento para o qual poucos se preparam. Tirar máscaras, tão habilmente cultivadas, e se apresentar na própria fragilidade, não é fácil.
Integrar os novos (ou velhos?) personagens que nos habitam e agora descobertos, eis a tarefa desafiante nesta nova fase da vida. O consciente precisa integrar, cada vez mais, o inconsciente (pessoal e coletivo!) e torná-lo, de algum modo, mais claro e nítido. Se negamos nossa realidade sombria perdemos nossas raízes e uma visão mais ampla da humanidade. Assomar-se a essa realidade imensa do inconsciente traz, como conseqüência, maior integração e segurança. Dar nome aos “bichos” e “monstros” que vão aparecendo, os domesticamos! Acaso não foi a primeira coisa que, o velho pai Adão, teve que fazer para se sentir senhor e dono da criação?
Continuemos com o testemunho escrito dessa nossa amiga “formadora”, pasmada diante do surgimento desta nova realidade sombria:
“Há vários anos dirigia tranqüilamente o carro; ultimamente, o carro é sinônimo de medo, insegurança e incerteza. Todo o meu ser parece estar completamente desestruturado e desconjuntado. Sinto um nervosismo total! Outro dia quando alguém me pediu uma carona até a rodoviária surpreendi-me dizendo: Vamos de ônibus! Eu volto andando pra fazer um pouco de exercício físico! Era pura mentira! A verdade é que tinha medo de dirigir o carro e de voltar sozinha. E continua:
Vocacionalmente sinto-me insegura e vazia. Faço as coisas mais por obrigação do que por devoção. O que está acontecendo comigo? Pergunto-me e não obtenho respostas a não ser uma maior inquietação e angústia. É como um calafrio perpassando-me por dentro. Deus parece ter “sumido” da minha vida; sinto-me punida por minhas faltas passadas. Eu sei que Deus é bom, mas são esses os ‘bons’ pensamentos que vêm na minha cabeça. Só esses!
Como religiosa me pergunto se ainda valho alguma coisa. Questiono se o que fiz até agora foi válido ou se realmente vivi um belo sonho, onde tudo, agora, acabou. Sinto-me totalmente incapaz. Pra dizer a verdade, sinto mais incapacidade para o bem do que para o mal. Gasto muita energia para fazer aquilo que deve ser feito e não fazer o que não deve ser feito. Parece que perdi toda capacidade de sonhar e de realizar grandes coisas pelos outros. Enfim, estou ficando mesquinha, medíocre e ranzinza. Encontro-me, muitas vezes dizendo não posso, não tenho tempo!... Meu Deus, onde está minha gratuidade evangélica?”
4. Nossa irmã a desolação. É importante salientar que a desolação (falta de fé, esperança e amor) pode entrar na nossa vida, por um certo tempo. A crise do “demônio meridiano” surge ao se deparar com as realidades sombrias que nos habitam. Sempre é doloroso perceber o nosso lado mais mesquinho fazendo também parte da nossa realidade pessoal!
Esta nova realidade sombria tem o perigo de transformar os nossos melhores sonhos, até agora acalentados, em dificuldades e perguntas insidiosas: Será que valeu a pena?... Além de ‘socos e pontapés’, o que eu ganhei?... Onde estão os frutos de tanto trabalho e esforço? Será que Deus está conosco?.... O desalento, como densa neblina, tenta ofuscar tudo e o ceticismo e miséria pessoal se apresenta na sua natural crueza. As forças, que antes estavam ao nosso favor, vão se debilitando e acabando. Fica apenas a experiência do nosso ser real e sempre limitado.
No meio desta crise, corre-se o perigo de se distanciar de tudo e de todos. Isolar-se no seu pequeno mundo de fantasias e limitações. Trabalhar sem entusiasmo e ter a impressão de que algo muito importante se perdeu. Onde está a intimidade com Deus?... E aqueles gestos generosos de “santas loucuras”? No seu lugar encontra-se escuridão e no meio dela “demônios” espantosos, terrificantes e paralisadores, alimentados nos porões da nossa personalidade.
Contudo, essa insatisfação, perplexidade e desânimo são sinais de um novo chamado para uma vida nova de maior integração, profundidade e individuação. Nossa irmã formadora continua explicitando o que sente:
“Sempre fui muito expansiva, sorridente, ágil e de grande disponibilidade. Agora, sinto como se estas qualidades tivessem sumido, se apagando ou sufocando. Elas não vêm mais à tona. Meu relacionamento com as jovens está muito difícil e procuro não encontrá-las, nem enfrentá-las. Não consigo ter um papo amigo e sereno com elas. Tudo me irrita! Sei que o problema é meu, mas como sair dessa?
Não sinto mais gosto de viver. Vejo que me distancio dos grupos e das pessoas. Prefiro ficar a sós. Até para falar no grupo sinto-me amarrada, sufocada e presa. A sensação que tenho é de que realmente estou ficando sozinha!”
5. A solidariedade interior. A afetividade, nesta fase, é vivida no seu realismo. Acabaram-se os sonhos, mas não as paixões. Um amor escondido pode aparecer a qualquer momento tentando dar sentido ao marasmo interior experimentado. Para tornar-se amigo do mundo exterior é preciso, primeiro, nos tornar amigos dessa outra parte escondida dentro de nós. Quem assim não fizer viverá dividido, buscando satisfações momentâneas e conforto, para não sentir excessivamente o peso da solidão e da insegurança. Desse jeito, pouco se pode esperar da vida a não ser a repetição de gestos e formas para manter apenas as aparências!
Que fazer? Será que tudo está perdido e é lei da vida chegar a curtir, sem outro horizonte possível, a própria limitação e mediocridade? É verdade que diversas causas podem acrescentar maiores efeitos a essa experiência de entrada nos “enta” (quarenta, cinqüenta anos de idade...). Cansaço, depressão, desânimo são alguns dos elementos que podem fazer fermentar, ainda mais, todo esse caldo natural que a vida, na sua estranha sabedoria, nos impõe.
Lembra-se daquela mulher samaritana que se aproximou do poço de Jacó? "Era mais ou menos meio-dia" diz o velho São João (Jo 4, 6). Hora de grande calor, cansaço e suor, mas também de luz, clareza e total iluminação... Hora de purificação e de grandes decisões. Como evangelizar não só nosso consciente, mas também o inconsciente com todos os personagens que nele habitam?
O Reino de Deus já chegou. “O Verbo se fez carne e habitou no meio de nós", na nossa pobre condição humana. Pela encarnação Ele assumiu a realidade humana e, a sua luz e salvação chegam até os porões mais escuros da nossa existência. Nenhuma realidade ou personagem fica marginalizada ou deixam de ser atingidas pela salvação. Conhecer a própria sombra, falar amigavelmente com ela, acolhê-la e apresentá-la confiante ao Senhor da Vida é experimentar, com certeza, a salvação trazida pelo Senhor Jesus que, gratuitamente, se aproximou dos pobres e pecadores, fazendo-os assentar no banquete do Reino.
A segunda “metade da vida” nos convida a sermos mais evangélicos, caridosos e misericordiosos também conosco. Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio são uma preciosa ajuda para realizar, honestamente, esse encontro entre o consciente e o inconsciente, à luz de Deus.
Não tenha, pois, medo de ser feliz. Permita-me sugerir alguns conselhos para viver, sadiamente e com maior alegria e esperança, esta etapa da vida:
1º Curta, sem medos, esta nova etapa da vida. A crise experimentada é o lugar de um novo encontro com Deus e ocasião de uma nova experiência. Fique contente com isso!
2º Viva com fé essa etapa da vida. No diálogo da oração, muitas feridas ficarão cicatrizadas e curadas.
3º Tente tirar algum bem de todo o sentido e experimentado. Saiba sorrir até das suas limitações, pois Deus age também nelas.
4º Não fuja de si mesmo e não tenha medo de olhar para dentro de si.
5º Entregue-se definitivamente a Deus e permita que Ele o dirija. Deus o ama gratuitamente, não por que você o merece, mas porque Ele é bom.
6º Partilhe com alguém sua experiência humana. Não tenha receios de verbalizar sua experiência. Lembre-se: "As sombras aparecem nos dias de sol".
Entrando neste processo de personalização poderá sair, dessa "nova etapa", mais livre e enriquecido. Adquirirá maior experiência e iluminação fazendo com que possa viver, evangelicamente, sem medo de nada perder, pois já muito foi deixado. Iniciam-se tempos de plenitude e sabedoria sem limites e fronteiras.
Não tenha medo! Não passe a vida tendo pena de você. Agora é o grande momento da revisão e reformulação dos valores evangélicos que motivam e dão sentido a sua vida. O entusiasmo barulhento de outrora já se foi, resta agora a fidelidade despojada de tudo o que é secundário.
Viva feliz, confiantemente, como se ainda tivesse séculos diante de si. (Rev. ITAICI/12/1993)
Uma pergunta: O que tem aprendido com as suas crises?
Muito Obrigado por esta orientação. Estou passando por um momento difícil. Tantas perguntas sobre tudo que você comentou aqui me fez perturbar a minha cabeça. Parecendo ficar fora de mim. Agora vejo que o caminho é esse. Ainda bem que existem pessoas assim como você para nos orientar.
ResponderExcluirUm abraço!
Branca - Paróquia Santo Antônio de Pádua - Iconha - ES
Obs.: Viúva há um ano.
Muito obrigado pelo esclarecimento e poder partilhar um pouco do seu conhecimento como pastor da igreja fundada por nosso senhor JESUS CRISTO!Paz e Bem e salve MARIA SANTÍSSIMA.
ResponderExcluirGostei muito de seu texto.Inteligente e esclarecedor. Minha experiência de vida sempre na presença de Deus não poupou-me os sofrimentos naturais que os anos desde os mais tenros trouxeram, mas fortificaram-me para aceitar tudo, em Cristo. Só tenho a agradecer a vida, sempre agasalhada e protegida pela Trindade. Graças a Deus!
ExcluirSua ausência deixou-nos um vazio, nós temos saudade e oramos pelo senhor. Ainda bem que o curtimos... Obrigada pelo que fez pelo povo desta cidade. Fique com Deus. Abraços. Rita Seda
Pe.Ramon,
ResponderExcluirSeus textos falam com a gente como que respondendo as nossas inquietações.Sou muito feliz nessa metade da vida,comecei a perceber que tenho liberdade para fazer muitas escolhas.Descobri que precisava de cuidados médicos devido a queda dos hormônios e procurei tb cuidar da alimentação ,busquei uma atividade física,(não gosto de academias)fui caminhar com uma amiga...voltei a frequentar minha Paróquia não apenas nas missas dominicais e que riqueza foi e está sendo tudo isso!!!Estou na metade de uma segunda graduação.E tenho aprendido a viver no momento presente e sem medo dos medos que eu vinha criando cada dia.Convicta que Deus caminha comigo, sigo sempre em frente!Sandra Márcia
P.RANÓN,
ResponderExcluirA DOCE PAZ DO MENINO DEUS!
NA MEIA IDADE, MUITA GENTE PARA POR QUE CHEGOU NA METADE E CRIA UMA SÉRIE DE QUESTIONAMENTOS, QUE VOCÊ SABIAMENTE CITOU, E QUE SUA PERSONAGEM VIVENCIA.
CREIO E VIVO A OUTRA METADE. AINDA FALTA MEIO CAMINHO!!!!
TENHO TANTOS SONHOS A REALIZAR, ALGUNS DE FORMA DIFERENTE, MAS SONHOS SONHADOS NA PRESENÇA DO SENHOR E QUE COM CERTEZA OS VIVEREI NA PRESENÇA DELE.
ANTES SONHAVA TER FILHOS, CRIA-LOS PARA SEREM HONESTOS, TRABALHADORES E SANTOS, QUERIA VER MEUS NETOS E AJUDAR A FAZER O MESMO, COMO AVÓ.HOJE ESTOU VIVENDO A SEGUNDA PARTE E COM A GRAÇA DE DEUS.
GOSTARIA QUE AS PESSOAS PASSASSEM POR ESSE PROCESSO ASSIM, ACEITANDO AS MUDANÇAS E CURTINDO CADA UMA DELAS COMO PRESENTES DE DEUS.
NÃO SE PODE SER E FAZER AS MESMAS COISAS EM TODAS AS ETAPAS DA VIDA. MAS PODEMOS FAZER O QUE DEUS NOS PERMITE COM O CORAÇÃO AGRADECIDO POR TANTAS GRAÇAS.
UM ABRAÇO. LUIZA