Espiritualidade inaciana...

Deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus

Como rezar em profundidade? Alguns ficam na superfície das suas divisões e a fé não se traduz em unificação interior, nem em gesto fraterno. Um grande número de pessoas buscam os Exercícios Espirituais (EE) de santo Inácio de Loyola como experiência de encontro profundo consigo, com os outros, com o mundo e com Deus. Os EE são, pois, um "caminho interior" que unifica e nos coloca a serviço dos outros.

A cultura neoliberal e pós-cristã tem marcado e condicionado o nosso modo de proceder. As pessoas andam muito divididas e estressadas. As consequências são desastrosas em todos os níveis: familiar, profissional e religioso. Divididos interiormente e separados dos outros! Se unificados, nossos relacionamentos serão significativos, profundos e até místicos.

Não podemos manipular a experiência do encontro, mas podemos nos predispor melhor para ele!

Num retiro, onde tínhamos em comum a partilha da revisão da oração, uma irmã, com muita simplicidade e espontaneidade, assim se expressava: Hoje entrei na minha oração com espírito de pobreza e humildade... Percebi que estava calma, então me perguntei: como será que hoje o Espírito Santo está orando em mim? Mergulhei em profundidade... Aí eu senti que o Espírito Santo cantava assim: "Bendito sejas, ó Pai, pela tua grande misericórdia...” e repetia isso muitas vezes. Senti-me iluminada e profundamente amada... Aí eu comecei a repetir estas mesmas palavras...

Depois escutei as outras partilhas, mas aquela primeira era inesquecível e trazia novidade... Todos percebemos que alguma coisa de profundo e espiritual tinha acontecido. Não era partilha de "teorias", mas "experiência" de fronte a uma Alteridade. Uma coisa não é espiritual só por usar conceitos "espirituais", mas se há mesmo uma experiência unificadora e aberta.

Qual a experiência espiritual de Inácio de Loyola? Encontramo-nos diante de um homem extraordinário que experimentou realmente sua unificação interior: consigo, com os outros e com Deus.

Inácio de Loyola (1491-1556) é um convertido. Sua experiência não acontece dentro do espaço sagrado (templo, liturgia...), mas também no mundo (no seu quarto, ao lado de um rio, nas estradas...) O Deus verdadeiro supera nossos conceitos, espaços e tempos...

Ínhigo era o seu nome de batismo e assim foi chamado e viveu por mais de 30 anos incoerente e dividido; convertido, será Inácio. Um dia, Deus irrompeu na sua vida com maior força do que aquela bala de canhão que destroçou suas pernas (Pamplona: 20/MAI/1521). Sua recuperação foi um verdadeiro terremoto, pois seus valores mudaram de sentido e de hierarquia. Deixou de lado seu lado sombrio e se fez discípulo e seguidor de Jesus. E isso para sempre!

Não é fácil tal revertério positivo na vida. A experiência de Deus toca também sempre o inconsciente. A mente humana é como um 'iceberg', onde sobressai apenas 1/9 do que ela oculta. A parte visível 'consciente' e a submersa, 'pré-consciente' e a mais profunda 'inconsciente'. A mente guarda não só o que captamos e sentimos, mas também o que foi transmitido pelo DNA (inconsciente coletivo).

Inácio de Loyola entrou no seu inconsciente e se aproximou do seu 'eu original', verdadeiro e sadio. Isso o unificou.

Os Exercícios Espirituais são um caminho para uma abordagem do inconsciente e chegam até o próprio 'eu original', lugar santo, onde reside o lado mais positivo da pessoa. O 'eu original' não guarda os condicionamentos negativos (registros, mágoas, complexos, traumas, compensações, defesas...) do 'eu real'. Sempre que alguém se aproxima com fé desse espaço sagrado, fica unificado e se coloca a serviço dos outros.

Tampos atrás, conversava com um pastor da Igreja Presbiteriana Unificada e me disse:  Às vêzes, quando oro e entro em mim, naquelas profundidades abissais, onde residem os meus demônios, tenho medo. E olhando-me fixamente, disse-me: Você me entende?... Você já chegou a tamanhas profundidades e experimentou coisas semelhantes?... Já teve medo do seu lado sombrio e viu o rosto simbólico dos seus personagens negativos?...

Percebi que estava com uma pessoa que mergulhava até o mais fundo de si próprio. Profundidades abissais de si mesmo!... Aonde fica isso? Como chegar até esses níveis da consciência ou da mente? O que são exatamente esses 'demônios' que lá residem?

A experiência de Ínhigo de Loyola aconteceu nos anos 1521 e 1522, isto é, quando ele tinha 30 e 31 anos de idade. É o tempo da crise da autoimagem, do descompasso entre o 'eu real' (condicionado, ferido...) e o 'eu original' (livre, sadio...). Quanta frustração, insatisfação, culpabilidade, baixa estima e gasto excessivo de energias para entender nossas divisões e incoerências!...

Ínhigo de Loyola convalescia das feridas da guerra de Pamplona e ao mesmo tempo, pensava e se examinava lendo a vida de Jesus e dos santos... Desse modo, entrou no santuário da sua mente e via muitos pensamentos mundanos e veleidades: ficava logo embebido a pensar duas e três e quatro horas sem perceber... e ficava com isso tão desvanecido... E discorria por muitos assuntos... e detinha-se sempre no pensamento que voltava..., até que um dia se lhe abriram um pouco os olhos, e começou a maravilhar-se  com o que estava acontecendo.

Um dos modos para entrar no mais fundo da mente é ficar concentrado. Ínhigo fazia isso com certa facilidade! Mas, existe um caminho para mergulhar no pré-consciente e se aproximar do inconsciente? Alguns utilizam símbolos, como descer uma escada ou entrar num túnel ou mergulhar no mais fundo de um lago... Os meios podem ser diversos; o resultado não. O fruto desse mergulho é sempre a experiência do encontro com o mais profundo de si mesmo.

Ínhigo usou  algo parecido: Ele se confrontou, lendo o Evangelho e a vida de santos, com o melhor de si mesmo. Espelhando-se em Jesus, ele se via! O seu 'eu real' (limitado e ferido) se apresenta cruamente e ele fica espantado, até com desejos de se auto-eliminar.

Nesse mergulho passamos, primeiro, pela zona escura e não integrada, onde se esconderam os nossos 'demônios'... Esta realidade negativa, é tão viva e pujante que Inácio precisou partilhá-la com um confessor... Às vezes precisamos da absolvição dos outros, para nos perdoar!

E desse modo, Ínhigo foi se aproximando do seu 'eu original', cheio de vida e verdade... Recebe 'não pouca luz' e até 'vê', com os olhos interiores, 'Nossa Senhora com o Menino Jesus', o que lhe dá grande consolação. É a percepção da presença do Deus escondido nele...

Inácio passa por Montserrat (21/MAR/1522) e confessa seus pecados a um monge beneditino; doa sua mula ao mosteiro e suas roupas boas a um pobre mendigo. Por fim, entrega sua espada e punhal, símbolos da prepotência do homem velho, e os deposita aos pés de Nossa Senhora.

Inácio entra devagarinho no fundo da sua alma ao aproximar-se do seu 'eu original', dai alguns gestos significativos. Pacientemente revê sua vida, como alguém que desenrola um novelo de lã e descobre emocionado que Jesus sempre o amara. A Luz divina ilumina suas feridas, cicatrizando-as. E assim, de repente, um belo dia acorda como de um sonho: como se lhe tirassem dos ombros uma pesada capa' e surpreso exclama emocionado: 'Que vida nova é esta que agora começa?...'

O 'eu real', purificado e transcendido se aproximava do 'eu original', superando toda dicotomia. Nessa máxima pertença, a graça irrompe nele como uma nascente de água viva: ao rezar, ao toque do Angelus na Igreja dos dominicanos, seu espírito se eleva e contempla extasiado o mistério comunitário da Santíssima Trindade. Lágrimas de alegria o inundam! Todo dom procede do Pai pelo Filho... Jesus, caminho, verdade e vida: Iluminação fantástica olhando o rio Cardoner!

Unificados, vemos, ouvimos, sentimos e agimos como Inácio via, ouvia e fazia: Deus nos habita e nos coloca a serviço dos outros.

Por fim, no dia 18/FEV/1523, Inácio radiante, como um novo Moisés, deixa Manresa, rumo a Barcelona, Jerusalém, Paris, Roma... O mundo todo se abre à sua frente!

Uma pergunta: Sua espiritualidade o unifica ou neuroticamente o divide?   

5 comentários:

  1. Belo texto. Obrigado Sr. Ramón!

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  2. Caro Padre Ramón,
    Viver uma espiritualidade unificada nesses dias anda muito difícil. O discurso da racionalidade anda a preencher todos os espaços de nossas vidas. Nada parece ter valor ou fazer sentido sem antes ser ratificado pela ciência. Sinto(-me), e penso ver isso nas pessoas, que nossas próprias percepções são preteridas frente à autoridade do que dizem que sentimos ou devemos sentir. A consequência disso, é que andamos fracos em abrir os nossos corações para ouvir a voz que nele fala. Do amor até falamos, sobretudo como a justificação das relações que tem mais cara de medo da solidão do que de busca de comunhão. Estamos imersos em crises que encerram potenciais descobertas grandiosas em relação à nossa identidade original, mas falta-nos olhos de ver, e coração de sentir.
    Agradeço por suas reflexões.
    Fraternal abraço,
    Thiago

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  3. Belíssimo texto, Ramón.

    O cristão de hoje não tem mais como esconder, maquiar a sua relação com o transcendente, se a a sua dimensão espiritual é vivida de forma consciente e buscando a plenitude. A cultura da pós-modernidade, que relativiza tudo e transforma valores em discursos efêmeros e ajustáveis, tem se infiltrado mais e mais nas vidas das pessoas, principalmente dos jovens. A pergunta mais em voga atualmente é: "Você está feliz?" Caso a resposta seja negativa, obtém-se o passaporte para realizar os desejos e vontades mais egocêntricos. Isso não só aliena, divide a pessoa psicologicamente, como a torna um joguete na mão de "espiritualidades" que não se baseiam pelo princípio fundamental: buscar a vontade de Deus.
    Concordo com o Thiago quando ele diz que está cada vez mais difícil viver na sociedade de hoje. Contudo, algo paradoxalmente interessante também ocorre. Minha esposa e eu definimos desde o princípio que nosso casamento seria uma relação a três: Deus, ela e eu. Viver um matrimônio assim demanda uma sincera busca pela vontade de Deus, individualmente e como casal. Essa busca leva ao auto-conhecimento, que contribui para compreendermos as nossas limitações e enaltece os valores e a internalização dos mesmos que possuímos e almejamos.
    Por vezes somos interpelados por pessoas querendo saber como nos relacionamos tão bem. A resposta é simples, embora colocá-la em prática não o seja: Eu busco a Deus, que me revela quem sou. O "eu-revelado" (meu self verdadeiro, como dizia Thomas Merton) me ajuda a compreender o "self" em constante formação do meu cônjuge. Nós dois, juntos, com nossos dons e limitações, desejamos continuar seguindo-O e buscando a Sua vontade, reafirmando nossos valores, votos e compromisso. E então, buscamos ajudar os outros, com nossa vida, nossa espiritualidade e nossas descobertas.
    Deus caminha conosco... em direção aos outros! E por isso, só posso agradecer e louvar a Deus.

    Como sentir-me alienado ou dividido com um Deus que me revela, a cada vez que o busco, como eu sou verdadeiramente?

    Abraço forte, amigo!
    Francis

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  4. O sr. é um presente de Deus para todos nós. Reflito bastante as suas mensagens que são recados do Espírito Santo para nós. Que Deus lhe dê muita saúde para que possamos cantinuar nossa caminhada sempre presente ao Espírito da Trindade que em nós habita. Feliz natal. Sou amiga da Marcinha, embora haja uma diferença de idade , mas nossas buscas nos unem. Amiaga em Cristo Muneide

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  5. Pe. Ramón, boa noite. Lendo esse trecho sobre a EI, em alguns momentos deparei-me defronte a um espelho e vi nele a minha imagem refletida em Sto Inácio, o que ele experimentou, sem saber já venho experimentando há anos. Só quem vive essa experiência sabe se reconhecer. E realmente há uma felicidade enorme, quando ouvimos a resposta de Deus, principalmente como foi a minha em cânticos. Naquela manhã acordei com uma alegria indescritível, assim, como 1992 foi meu contato com a espiritualidade no Mosteiro de Claraval, o que senti lá, foi indescritível e jamais esquecido, era como se tivesse aberto para mim as portas do céu, chorei também de alegria, pelo Espírito Santo de Deus se manifestar em mim, tive a certeza absoluta da presença Divina em minha vida, mesmo ante todos os meus demônios, eu sabia não estar só, e a partir daí tenho pensado e mantido um diálogo constante com Deus e comigo mesma, penso que um dos passos para encontrar a si mesmo, sem medo, é saber também reconhecer os demônios que habitam em nós, só os reconhecendo é que saberemos como cuidar para que eles não hajam em nossas ações,sem o auto-conhecimento tudo fica difícil,a necessidade de sair mais vezes ao encontro do outro no auxilio, é o que mais tem vindo para mim no presente momento, não posso interromper essa caminhada e às vezes sinto dificuldade em ultrapassar obstáculos, são nesses momentos, que me recolho mais,para oração e poder pensar livre das coisas que vem de fora,e essa semana, mais precisamente na quinta feira, eu tive essa certeza, quando sem me sentir dividida,sem me deter, simplesmente, deixei de ir a uma celebração do caminho neocatecumenal, porque meu coração me indicava um caminho de auxilio, o estar junto em oração na missa de sétimo dia, na Igreja Menino Jesus de Praga,com uma amiga cuja mãe faleceu, também muito amiga de minha família,e foi uma noite de espiritualidade harmônica,e de muita fé para mim, me senti realmente totalmente unificada com Deus e Jesus naquele momento,a certeza de ter tomado a decisão certa, confiei e fui,foi muito bom e o melhor, em nenhum momento me culpei por essa atitude, sendo que em outros tempos ficaria me auto punindo,pelo contrário, louvei a Deus e Jesus, por ter me conduzido naquela hora e eu ter ouvido. Fazer o bem, a caridade, só nos traz felicidade.

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