Estudos de gênero versus ideologia... (L. Correia Lima)


Os estudos de gênero são os principais alicerces teóricos de muitos que defendem a igualdade entre homem e mulher nos diversos âmbitos da sociedade, bem como a inclusão e a cidadania dos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). Esta teoria tem sido fortemente criticada por segmentos religiosos cristãos, incluindo a Igreja Católica, em pronunciamentos, publicações e campanhas. A principal crítica é a suposta minimização da dualidade dos sexos que questiona a família formada por pai e mãe, e a legitimação de um modelo polimórfico de sexualidade. Referem-se a estes estudos como ‘ideologia de gênero’. O espaço público torna-se certas vezes um campo de disputa na elaboração e implementação de políticas que envolvem a família, a educação, a saúde e os direitos.
Certa vez, o papa Francisco falou sobre a família e a inquietação que lhe trazem os estudos de gênero. Conforme a tradição judaico-cristã, a instituição familiar é um grande dom que Deus à humanidade, criando o ser humano homem e mulher e instituindo o sacramento do matrimônio. A diferença sexual está presente em várias formas de vida, mas somente no homem e na mulher esta diferença traz a imagem e a semelhança divina. A sua finalidade não é a oposição ou a subordinação, mas a comunhão e a geração. O ser humano precisa da reciprocidade entre homem e mulher para se conhecer bem e crescer harmonicamente.
Nos últimos tempos, prossegue o papa, a cultura abriu novos espaços, liberdades e profundidades que enriquecem a compreensão desta diferença, mas também trouxe muitas dúvidas e bastante ceticismo. E fez esta interrogação: “pergunto-me se a chamada teoria do gênero não seja expressão de uma frustração e de uma resignação, que visa a cancelar a diferença sexual porque não sabe mais como lidar com ela”. Para ele, corre-se o risco de dar um passo atrás. A remoção da diferença seria verdadeiramente o problema, não a solução (FRANCISCO, 2015b).
A alta hierarquia católica havia alertado para novas tendências no tema da mulher. Uma delas sublinha fortemente a sua subordinação, procurando fomentar a contestação. A mulher é “antagônica do homem”. Os abusos de poder se enfrentam com a busca do poder. Este processo leva à rivalidade entre os sexos, onde a identidade e o papel de um são assumidos em prejuízo do outro, introduzindo na antropologia uma confusão perniciosa, com reveses nefastos na estrutura da família. Outra tendência é consequência da primeira. A fim de evitar qualquer supremacia de um sexo sobre o outro, tende-se a “eliminar as suas diferenças” considerando-as meros efeitos de um condicionamento histórico-cultural. A diferença corpórea, chamada sexo, é minimizada; e a dimensão cultural, chamada gênero, é maximizada e considerada primária. Tal antropologia, que obscurece a dualidade dos sexos em favor de perspectivas igualitárias para a mulher, questiona a natureza biparental da família, composta de pai e de mãe, e equipara a homossexualidade à heterossexualidade, num novo modelo de sexualidade polimórfica (CDF, 2004, nº2).
A motivação mais profunda desta tendência estaria na tentativa de a pessoa humana de “libertar-se dos próprios condicionamentos biológicos”. Nesta perspectiva antropológica, a natureza humana não tem em si características que se imponham absolutamente, mas cada pessoa poderia e deveria modelar-se a seu gosto, livre de toda a predeterminação ligada à sua constituição essencial. Diante de tais correntes de pensamento, a Igreja reage inspirando-se fé em Jesus Cristo. Em lugar do antagonismo e da eliminação da diferença entre homem e mulher, propõe a “colaboração ativa” fundada no reconhecimento desta mesma diferença (ibidem, nº3 e 4).
Estas posições levaram a Santa Sé a divergências na ONU quando se propôs a descriminalização da homossexualidade em todo o mundo. Tal proposta foi feita pela França e incluía o fim da discriminação por identidade gênero e orientação sexual. A Santa Sé se manifestou favoravelmente a esta descriminalização, por entender que as relações sexuais livremente consentidas entre pessoas adultas não devem ser consideradas delito pelo poder civil. Mas se opôs ao fim da discriminação por identidade de gênero e orientação sexual. Alegou que isto poderia se tornar um instrumento de pressão contra os que consideram o comportamento homossexual moralmente inaceitável, não reconhecem a união homossexual como família, nem a sua equiparação à união heterossexual e nem o seu direito à adoção e à reprodução assistida (L’Osservatore, 2008).
O tom das críticas aos estudos de gênero subiu no papado de Bento XVI. Para ele, estes estudos são uma “auto-emancipação do homem” em relação à obra do Criador, levando-o a viver contra a verdade e contra o Espírito criador. Os bosques tropicais merecem proteção, e não menos o ser humano como criatura, no qual está inscrita uma mensagem que não contradiz a liberdade humana, mas é sua condição. Desprezar esta linguagem da criação significa uma “auto-destruição do homem”, destruindo-se a própria obra de Deus (BENTO XVI, 2008).
Além das críticas da Santa Sé, há publicações com grande difusão em ambientes católicos que caricaturam as questões de gênero e de orientação sexual. Uma delas, que é material didático, traz o desenho de um homem sentado interrogando-se: “que gênero eu vou escolher para este ano?”. E, em outra página, o desenho de um garoto nu olhando para o próprio pênis perguntando-se: “não sou homem? Eu? Então… o que isto?”. Há referências aos estudos de gênero como uma ideologia de “neototalitarismo e morte da família”. Esta ideologia estaria controlando a ONU, a União Europeia e o Banco Mundial, incidindo em organismos, programas e em empréstimos para o desenvolvimento de países pobres, com cláusulas de difusão de gênero (SIQUEIRA, 2012).
Estas objeções religiosas incidem na elaboração de políticas públicas. Há pouco tempo, por pressões junto ao parlamento brasileiro, foi retirada a menção a questões de gênero e orientação sexual no Plano Nacional de Educação, projeto de lei que define diretrizes e metas para a educação até 2020. No texto original, estava previsto promover “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Na redação final, ficou: “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação” (PNE, 2014).
Mesmo com as restrições aos estudos de gênero, o papado de Francisco trouxe uma abertura pastoral à Igreja Católica. Para ele, evangelizar supõe na Igreja a coragem de sair de si para ir às “periferias da existência”: ao encontro dos que sofrem com as diversas formas de injustiças, conflitos e carências. Ele critica uma Igreja ensimesmada, entrincheirada em estruturas caducas incapazes de acolhimento. Ficou célebre o que ele disse sobre os gays: “Se uma pessoa é gay, procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar? […] Não se devem marginalizar estas pessoas por isso” (FRANCISCO, 2013). Outro sinal desta abertura é a convocação de um sínodo dos bispos para tratar do tema da família, incluindo as novas configurações familiares, com ampla consulta às igrejas locais.
O papa exorta os teólogos a prosseguirem no caminho do Concílio Vaticano II, de releitura do Evangelho na perspectiva da cultura contemporânea. Estudar e ensinar teologia deve significar “viver em uma fronteira”, na qual o Evangelho encontra as necessidades das pessoas às quais é anunciado de maneira compreensível e significativa. Deve-se evitar uma teologia que se esgote em disputas acadêmicas ou que contemple a humanidade a partir de um “castelo de cristal”. Ela deve acompanhar os processos culturais e sociais, especialmente as transições difíceis, assumindo os conflitos que afetam a todos. Os bons teólogos, como os bons pastores, devem ter “cheiro de povo e de rua”, e com sua reflexão derramar “óleo e vinho nas feridas dos homens”, como o bom samaritano (FRANCISCO, 2015a).
No ambiente acadêmico, questiona-se a existência de uma teoria do gênero, e mesmo uma ideologia. Os estudos de gênero são a tradução do inglês gender theory. Teoria, neste caso, é uma má tradução porque estudos são bastante heterogêneos. Às vezes eles se entrelaçam, mas outras vezes correm em paralelo sem se encontrar. Não há uma teoria que seja unificadora e abrangente. O que há é um acordo geral em considerar os complexos comportamentos, direta ou indiretamente concernentes à esfera sexual, como fruto de dimensões diferentes, não totalmente independentes e por sua vez complexas: o sexo anatômico, a identidade e o papel de gênero, e a orientação sexual. Não há uma coerência necessária entre sexo anatômico, percepção e vivência da própria identidade como masculina ou feminina, o desejo e a prática sexual.
Há uma perspectiva cristã de gênero propondo não renunciar à diferença entre homem e mulher e à sua fundamental importância, que tem raiz no sexo biológico e constitui o arquétipo do qual se origina a humanidade. Que não se pense nos processos sociais e culturais prescindindo inteiramente do componente biológico, da estrutura genética e neuronal do sujeito humano. Mas também que se evidencie o papel da cultura e das estruturas sociais, reconhecendo-se o mérito das teorias de gênero em captar a relevância das vivências pessoais na definição da identidade de gênero. Isto contribui para a superação de preconceitos causadores de graves discriminações, que levaram e ainda levam à marginalização dos LGBT (PIANA, 2014).
A filósofa Judith Butler faz a afirmação radical de que não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero. Essa identidade é performativamente constituída através das expressões tidas como seus resultados (BUTLER, 2008: 47-48). Mesmo que se discorde disto, há no seu pensamento uma pertinente busca de um vocabulário adequado para maneiras de viver o gênero e a sexualidade indo além da norma binária, restrita ao homem e à mulher cisgêneros e heterossexuais. Para esta filósofa, é preciso emitir a palavra em que a complexidade existente possa ser reconhecida, onde o medo da marginalização, da patologização e da violência seja radicalmente eliminado. E arrisca dizer que talvez não seja tão importante produzir novas formulações de gênero, mas sim construir um mundo em que as pessoas possam viver e respirar dentro da sua própria sexualidade e do seu próprio gênero (BUTLER, 2009). Como pode o cristão ficar alheio a esta aspiração tão salutar? E o teólogo convocado a viver na fronteira e a assumir os conflitos que afetam a todos?

A interrogação do papa Francisco sobre os estudos de gênero lança a suspeita de se querer cancelar a diferença sexual por não se saber mais como lidar com ela. Felizmente ele formulou esta objeção em forma de pergunta, sem execração, ao contrário de seus antecessores. E reconhece que a cultura abre novos espaços, liberdades e profundidades na compreensão da sexualidade. Para ir às periferias existenciais, reler o Evangelho em novas perspectivas e curar feridas em vez de aumentá-las, é necessário não rejeitar o que os estudos de gênero tenham de positivo e incorporá-los na antropologia teológica. Um bom missionário reconhece as sementes do Verbo presentes em civilizações e religiões não cristãs, pois estas sementes estão em toda busca sincera da verdade, do bem e de Deus. Assim também os fiéis cristãos devem reconhecer os sinais dos tempos, abrindo caminho para relações mais justas entre os gêneros e para a cidadania da população LGBT.

2 comentários:

  1. Sem prolixidade tentando esconder minhas opiniões através das posições de terceiros:

    Uma Igreja que se guie pelos ventos de seu tempo abandonando o vento do Espírito Santo merece a insignificância e desprezo das pessoas de bem.

    A Igreja Católica sempre assumiu postura clara sobre o tema, ao invés de inverter os valores de 1 Bilhão de fiéis e 2000 anos de história porque os inconformados não criam sua própria seita do modernismo?
    Não se conformam com sua posição minoritária e ao flagrante confronto teológico; para se sentirem com a razão e aliviarem a consciência querem curvar a maioria à sua vontade e arrasta-la para o erro.

    Sou claro:
    Alavancar o ato sexual e questões afetivas como base para reconhecimento do núcleo familiar é deturpação de um sacramento embasante da sociedade e da Igreja e de artigo expresso na Constituição Brasileira a que juízes que a Igreja apoia no STF fraudaram.

    Auto determinação agora é a referência para uma questão biológica?
    Não se contentam que a sociedade aceite sua interpretação de mundo, querem que todos pensem de forma igual, quem não concorda que fique quieto no silêncio de seu intimo.
    Isso o Fachin já falou na sua sabatina pro STF, isso Marta Suplicy, PSOL, PT e a mídia de forma disseminada defendem abertamente.

    Senhor Ramon, certamente tens conhecimento do que esses grupos da "ideologia de gênero", sindicatos gayzistas defendem nos dias de hoje:

    - Querem forçar que as diferentes Igrejas (cristãs em especial) violem suas crenças e sejam forçadas a realizar casamentos gays.
    Sim, todos sabem que esse é o objetivo covardemente e diabolicamente não declarado por tantos, em especial dentro da Igreja. A resistência hierárquica a isso felizmente expressa que os bispos e cardeais ainda não tão tolos como julgam e que Cristo ainda se faz presente na Igreja.

    - Não existe diferença entre sexos. Como exemplo o COI já trata de como lidar com pessoas de um gênero que querem disputar alguma modalidade por outro gênero, o que, no caso de um homem disputando com mulheres terá flagrante vantagem biológica, por que o óbvio nunca vão negar: homem é homem, mulher é mulher, por mais que não acreditem nisso, por mais que intervenções cirurgicas tentem negar.

    - No EUA já é polêmica a imposição de BANHEIROS UNISSEX, isso, as mulheres terão que dividir banheiro com homens; meninas, senhoras terão que dividir este espaço com homens sem outra opção.

    Quem ainda não entendeu tentarei ser mais claro ainda:

    Vivemos sob a ditadura de uma minoria que impõe a uma maioria sua forma de enxergar o mundo e submete-as a práticas frontais a sua vontade, valores e segurança individuais.

    Alguém pergunta à grande maioria das esportistas sobre a possibilidade de competirem contra homens? A resposta óbvia a longo prazo é uma só: extinguirão modalidades por gênero. Quem sai perdendo são as mulheres, 50% da população que terá seus direitos caçados por uma minoria pró homens que não se aceitam como tal.

    Em nome da não "discriminação" vamos caçar os direitos e segurança de 50% da população? Quem perguntou às mulheres o que acham em dividir o banheiro com homens? como ficam os homens em saber que suas mães, filhas, irmãs, esposas dividem banheiro com homens.

    Isso são só exemplos, há muito mais questões práticas em ação e por vir.

    E sabem o que é pior? Como essa gente se sabe minoritarios eles solapam a democracia e violam as instituições através de portarias e normas não aprovadas pelo legislativo. A sociedade se torna refém de ideias que não tem respaldo popular e que escondem origem e reais motivações. O politicamente correto solapa nossas consciências, solapam nossa fé, nossa cultura e nossas liberdades individuais.

    A maciça promoção de tais ideologias como as únicas aceitáveis nos tempos modernos não é acaso, dão a impressão que só pode existir uma resposta: a ideologia de gênero.

    Num debate sincero, sem mistificação e desqualificação como se faz contra a Igreja e pessoas pró família e cristãos esse tema não se sustenta, mas quem hoje presa pela verdade

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  2. Discriminar é distinguir!
    Sempre que elegemos algo, discriminamos, pois optamos por este e descartamos aquele.
    Portanto, chamar cada coisa pelo devido nome é uma justa discriminação. É preciso refletir sobre a diferença entre o comportamento homossexual como fenômeno "privado" e como comportamento público, legalmente previsto e instituído. À lei cabe estruturar a vida do homem em sociedade. Por isso, os modelos previstos em lei tendem a modificar e interferir na vida social presente e na compreensão e valoração dos comportamentos a serem vividos.
    Estender o conceito de "família natural" aos homossexuais pela via legal é obscurecer a percepção de valores fundamentais e caros para a sociedade!
    Em suma, deixar de distinguir para alegar o "novo" serve, apenas, para revelar a verdade dos contornos do velho...

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