Coragem e audácia profética...

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    No dia 24/OUT/2016, o Papa Francisco teve um encontro de uma hora e trinta, com os jesuítas reunidos em sua 36ª CG. O diálogo entre o Papa e os jesuítas foi publicado por La Civiltà Cattolica (24/NOV/2016). Eis o texto.
Santo Padre, o senhor é um exemplo vivo de audácia profética. Como faz para comunicá-la com tanta eficácia? Como podemos fazê-lo também nós?
A coragem não é só fazer barulho, mas saber fazê-lo bem. É preciso saber quando devemos fazê-lo e como. E, também, antes de mais nada se deve discernir se se deve fazer barulho ou não. A coragem é constitutiva de toda ação apostólica. E hoje temos necessidade mais do que nunca de coragem e audácia profética. Temos necessidade de uma parresia aggiornada, a audácia profética de não ter medo. É sugestivo que esta tenha sido a primeira coisa que São João Paulo II disse quando foi eleito papa: “Não tenham medo!”. Ele recordou todos os problemas dos países do Leste e a audácia o levou a enfrentá-los sem exceção. [...]

Qual é a sua experiência com os irmãos na Companhia, quanto ao seu papel e a como se podem atrair vocações de irmãos à Companhia?
Minha experiência com os irmãos sempre foi muito positiva. Os irmãos com que convivi, no meu tempo de estudante, eram homens sábios, de muita sabedoria. Eles tinham uma sabedoria diferente daquela dos estudantes ou mesmo dos sacerdotes. Mesmo agora, irmãos com muito estudo e que têm postos de direção nas instituições, têm um “não sei o quê” de diferente dos sacerdotes. E creio que devemos conservar isso. Essa sabedoria, esse algo sapiencial que vem do fato de ser irmão.
Além disso, o que me impressionava nos grandes irmãos que conheci é olfato que tinham, quando diziam, por exemplo: “Observe bem aquele padre, me parece que precisa de uma ajuda especial...”. Os irmãos que conheci muitas vezes tinham uma discrição muito grande. E ajudavam! O irmão se dava conta antes que outros companheiros de comunidade do que estava acontecendo. Não sei como dizer isso. Creio que há aqui uma graça específica e devemos buscar qual é a vontade de Deus sobre o irmão neste momento e também como expressar isso.

Eu gostaria que nos dissesse quando se cumprirá a profecia de Isaías: “Das suas espadas construirão arados...”. No meu continente, a África, já temos meios suficientes para matar dez vezes a cada um de nós.
Trabalhar pela paz é algo urgente. Eu disse, há mais de um ano e meio, que estamos na Terceira Guerra Mundial, em pedaços. Agora os pedaços estão se juntando cada vez mais. Estamos em guerra. Não devemos ser ingênuos. O mundo está em guerra e quem paga o pato são alguns países. Pensemos no Oriente Médio, na África: ali se dá uma situação de contínuas guerras. Guerras que derivam de toda uma história de colonização e exploração. É verdade que há países que conquistaram sua independência, mas muitas vezes o país que lhes deu a independência reservou para si o subsolo. A África segue sendo um alvo de exploração pelas riquezas que tem. Até mesmo por parte de países que antes nem pensavam neste continente. A África sempre é vista pela ótica da exploração. E claramente isto provoca guerras. [...]

A Igreja experimenta uma queda de vocações, sobretudo em lugares em que se tem sido relutante em promover as vocações locais.
Aconteceu comigo em Buenos Aires, como bispo, que padres muitos bons, mais de uma vez, conversando, diziam: “Na paróquia, tenho um leigo que ‘vale ouro’”. E o apresentavam como um leigo de primeira. E depois me diziam: “O que lhe parece se o fazemos diácono?” Este é o problema: o leigo que vale, o fazemos diácono; o clericalizamos. Em uma carta que eu enviei recentemente ao cardeal Ouellet, escrevia que na América Latina, a única coisa que mais ou menos se salvou do clericalismo é a piedade popular. Porque, como a piedade popular é uma dessas coisas “da gente” nas quais os padres não acreditavam, os leigos foram criativos. Talvez tenha sido necessário corrigir algumas coisas, mas a piedade popular se salvou porque os padres não se meteram.
O clericalismo não deixa crescer, não deixa crescer a força do batismo. A graça do Batismo tem a graça e a força evangelizadora da expressão missionária. E o clericalismo disciplina mal esta graça e induz a dependências que, às vezes, mantêm povos inteiros em um estado de imaturidade muito grande. Lembro-me das brigas que houve quando, sendo eu estudante de teologia ou padre jovem, surgiram as comunidades eclesiais de base. Por quê? Porque ali os leigos começaram a ter um protagonismo um pouco forte e os primeiros que se sentiam inseguros eram alguns padres. Estou generalizando muito, mas o faço de propósito: se caricaturizo o problema é porque o problema do clericalismo é muito sério.
Com respeito às vocações locais, digo que a diminuição das vocações será tratada no próximo Sínodo. Creio que as vocações existem, simplesmente é preciso saber como são propostas e que tratamento recebem. Se o padre sempre está apurado, se está metido em mil coisas administrativas, se não nos convencemos de que a direção espiritual é um carisma não clerical, mas laical (que também o padre pode desenvolver), e se não inserimos e convocamos os leigos no discernimento vocacional, é evidente que não vamos ter vocações.
Os jovens precisam ser ouvidos; e os jovens cansam. Eles sempre vêm com as mesmas coisas e é preciso ouvi-los. Claro, para isso devemos ter paciência, estar sentados e ouvir. E também criatividade: para colocá-los a trabalhar em coisas. Atualmente, as “reuniões” de sempre já não fazem muito sentido, não são fecundas. É preciso lançar os jovens em atividades do tipo missionário, catequético ou de tipo social; isso faz muito bem.
Certa vez fui a uma paróquia da periferia, em uma “villa miseria”. O padre me disse que estava construindo um salão para reuniões. E como este padre também dava aulas na universidade estatal, como ajudante de cátedra, tinha suscitado nos rapazes e nas moças entusiasmo e desejo de participar. Eu cheguei num sábado e estavam trabalhando como carpinteiros; o engenheiro da obra era judeu, uma das moças era ateia e o outro não sei quê coisa, mas estavam unidos em um trabalho comum. Isso vai criando a pergunta: posso eu fazer algo pelos outros e com os outros? É preciso colocar os jovens para trabalhar e ouvi-los. São as duas coisas que eu diria.
Não promover vocações locais é um suicídio, é diretamente esterilizar uma Igreja, a Igreja é mãe. Não promover as vocações é uma ligação de trompas eclesial. É não deixar que essa mãe tenha seus filhos. E isso é grave.

A digitalização é uma característica desta época moderna. Cria velocidade, tensão, crise. Qual é o seu impacto na sociedade atual? Como fazer para ter velocidade e profundidade?
Há 30 anos ou mais, os holandeses inventaram uma palavra “rapidación”. Ou seja, a progressão geométrica em termos de velocidade; e é esta “rapidación” que transforma o mundo digital em uma possível ameaça. Não falo aqui dos seus aspectos positivos, porque todos nós os conhecemos. Destaco também o problema da liquidez, que pode anular o concreto. Um tempo atrás, alguém me contava sobre um bispo europeu que foi ver um amigo empresário. Este lhe mostrou como em 10 minutos fazia uma operação que dava certo ganho. De Los Angeles vendeu gado para Hong Kong e em poucos minutos teve um lucro que foi imediatamente creditado em sua conta. A liquidez da economia, a liquidez do trabalho: tudo isto provoca desemprego. É o mundo líquido. Sente-se no ar uma reivindicação, um grito de “retorno”, embora esta palavra não me agrade, porque é meio nostálgica. “Volver” é o título de um tango argentino! Existe o desejo de recuperar a dimensão concreta do trabalho. Na Itália, 40% dos jovens com menos de 25 anos estão desempregados; na Espanha, 50%; na Croácia, 47%. É um sinal de alarme que mostra esta liquidez que cria desemprego.

Obrigado pelas perguntas e pela fluidez, e me desculpem se soltei a língua.


Um comentário:

  1. Realmente o papa é contra o clericalismo... Será por isso que quando era arcebispo de Buenos Aires muitos clérigos abandonaram o ministério?

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