Rezar nos umbrais do inconsciente... (I)




Encontramo-nos diante de um tema relativamente novo: Como usar a força e os conteúdos do inconsciente na oração e rezar em profundidade?

A experiência tem mostrado que algumas pessoas, ao rezar, ficam na superfície da experiência e não acontecem mudanças substanciais na suas vidas. Fazem os Exercícios Espirituais (EE) anuais, mais por "desobriga" do que por uma busca profunda do significado da sua vida em confronto com Deus. Por outro lado, percebe-se um grande número de pessoas que buscam os EE, como dinâmica de um encontro profundo consigo mesmo, com os outros, com o mundo e com Deus. Os EE são, pois, um "caminho interior" a ser percorrido, sentido e experimentado.

Nossa cultura neo-liberal tem marcado e condicionado o nosso modo de proceder. Hoje, as pessoas não têm tempo para quase nada. Precisamos priorizar objetivos, dizem, abarcar muito e aprofundar pouco! As consequências desse modo de agir repercutem no campo da vida espiritual como vazio e superficialidade. As pessoas rezam pouco e, quando o fazem, não se aprofundam no relacionamento com Deus, como não se aprofundam nos relacionamentos com os outros!

Outros, pelo contrário, percorreram modos de viver que repercutem em relacionamentos mais intensos e em formas de oração mais silenciosas. Fazem uma experiência de verdadeiro encontro e quando compartilham sua vivência, esta costuma ter as seguintes características: profunda (concentrada), comprometida (relacionada com a vida) e mística (experiência com o Deus vivo).

A oração cristã é uma resposta à presença do Deus absoluto. Somos conscientes da identidade da oração cristã frente a outros tipos de meditação (Zen, Ioga etc.) De pouco serve chegar ao isolamento do eu ou cair no vazio absoluto, se não chegamos a um diálogo na fé e no amor com Deus! A experiência mística cristã é sobrenatural, fruto da graça e não há técnicas capazes de produzir, por si mesmas, o encontro gratuito com Deus. Contudo, cremos que somos capazes de colocar alguns pressupostos mínimos, que podem facilitar a percepção do mistério de Deus. As adições dos EE pretendem isso: para melhor o exercitante encontrar o que deseja. Não podemos manipular a experiência do encontro, mas podemos nos predispor a ela!

Num retiro, onde tínhamos em comum a partilha da revisão da oração, uma irmã, com muita simplicidade e espontaneidade, assim se expressava: Hoje entrei na minha oração com espírito de pobreza e humildade... Percebi que estava calma... então me perguntei: como será que, hoje, está orando o Espírito Santo em mim?... Mergulhei em profundidade... Aí eu senti que o Espírito Santo cantava dentro de mim assim: "Bendito sejas, ó Pai, pela tua grande misericórdia... Bendito sejas, ó Pai, pela tua grande misericórdia"... e repetia isso muitas vezes. Senti-me toda iluminada e profundamente amada... Aí eu comecei a rezar com Ele, repetindo estas mesmas palavras"...

Logo depois escutei as outras partilhas, mas aquela outra trazia, dentro de si, uma experiência nova, que me tocava muito mais. Posso, com certeza, afirmar que esta experiência distava das outras como um filme dinâmico, novo, vivo e envolvente diverge de outro extremamente lento e cansativo. Todos tínhamos percebido que ali, alguma coisa de profundo e espiritual tinha acontecido. Aquela mulher não partilhava "teorias", mas tinha "experimentado moções" de fronte a uma Alteridade... Eu não estou dizendo que uma coisa é espiritual só porque usa conceitos assim chamados de "espirituais". Uma experiência é espiritual, quando ela é verdadeira e aberta ao transcendente.
Podemos enfocar a oração dos EE. nessa linha? Será que tudo não passa de um psicologismo? Será que isso não aliena e nos tira de compromissos mais sérios e duradouros? Esse modo de rezar tem algo a ver com a experiência de Santo Inácio?

A experiência espiritual de Inácio de Loyola. Encontramo-nos diante de um homem extraordinário que experimentou realidades e compreensões profundas e significativas.

Inácio de Loyola (1491-1556), mais do que um pedagogo (transmissor de conhecimentos), é um mistagogo, pois nos introduz no mistério de Deus. A experiência que ele faz do Transcendente não acontece só dentro do espaço sagrado (templo, liturgia etc.), mas também dentro de si e do mundo (no seu quarto, ao lado de um rio, nas estradas...) O Deus verdadeiro supera imensamente toda estreiteza de conceitos, espaços e tempos.

Ínhigo era o seu nome de batismo e também de vida mundana. Assim foi chamado e assim ele viveu por mais de 30 anos. Inácio é como ele se entende depois da sua conversão. Primeiro foi Ínhigo, depois Inácio. Ínhigo é fruto da natureza e do pecado, Inácio é obra do Espírito e da graça. Um não se entende sem o outro. O Absoluto irrompeu na sua vida com maior força do que aquela bala de canhão que destroçou suas pernas na batalha de Pamplona (20/MAI/1521). Ei-lo agora, enfim, quieto e paralisado por alguns meses. Durante esse tempo, Ínhigo experimenta, dentro de si, um verdadeiro terremoto interior, onde seus valores mudam de sentido e de hierarquia. Aos poucos e não sem sofrimento, seus olhos se abrem para uma realidade nova, interior, que, se a tinha percebido, jamais falara dela, nem lhe dera importância. Agora começa a encarar Deus, o mundo, os outros e até a si próprio com um outro olhar!

É importante entender a estrutura da mente para chegar a compreender melhor o que as palavras querem dizer. Precisamos perpassar o invólucro dos conceitos, para chegar à experiência formulada.

A mente humana é como um grande "iceberg", onde sobressai e emerge apenas 1/9 do que ela oculta. Essa parte menor, visível, é o que nós chamamos de "consciente"; outra parte submersa, mas próxima do consciente é o pré-consciente; e a mais distante e profunda é o inconsciente. Alguns autores afirmam que a mente guarda tudo, não só o que captamos e sentimos desde o momento da nossa concepção, mas também o nos foi transmitido pelo DNA (inconsciente coletivo).
A tese que partilhamos é: Inácio de Loyola fez (com os meios que tinha - ascese pessoal, jejuns, oração, leituras, - uma verdadeira entrada no seu inconsciente, chegando a captar o seu "eu original", profundo, verdadeiro e sadio.

Os Exercícios Espirituais foram e são um caminho para uma verdadeira abordagem do inconsciente (experiência do inconsciente transcendental) e fazem chegar até ao próprio "eu original", aquele lugar santo, intocável, onde residem, não só o lado mais positivo da pessoa, mas até o mesmo Deus. Esse "eu original" não guarda os condicionamentos negativos (registros, mágoas, complexos, traumas, compensações, defesas...) do "eu real". Nesse espaço do "eu original" podemos nos pré-dispor para o encontro com Deus. Sempre que alguém se aproxima com fé desse espaço sagrado do seu eu, faz uma verdadeira experiência espiritual, libertadora e comprometedora.

Expliquemos essa estrutura do "eu original" e do "eu real". O "eu original" é livre, criativo, capaz de dispor dos condicionamentos e de evitar as suas influências. Ele escolhe os melhores caminhos que levam à plena realização humana e à transcendência.  Não faz muito tempo, estava conversando com um pastor da Igreja Presbiteriana Unificada o qual tinha feito uma opção pelo celibato e estava querendo confrontar, fraternalmente, sua experiência com a minha. Depois de um certo tempo, chegamos ao ponto alto e empático da nossa conversa e me disse:    "Às vêzes, quando oro e entro em mim, naquelas profundidades abissais, onde residem os meus demônios, tenho medo. Eles moram lá, no mais fundo de mim mesmo, naqueles lugares onde tudo está escuro... E olhando-me fixamente nos olhos, disse-me: Você me entende?"

Você me entende?... Você chegou até tamanhas profundidades?... Já experimentou coisas semelhantes?... Já teve medo, quando se defrontou com o seu lado sombrio?... Viu, alguma vez, o rosto simbólico desses personagens negativos  que o povoam?... Você me entende?...

- Sim, eu o entendo! Respondi com alegria, percebendo que me defrontava com um homem que tivera a coragem de mergulhar até o mais fundo de si próprio, em busca dessa luz infinita que estoura dentro de si, quando se tira toda máscara e revestimento!

Profundidades abissais de si mesmo!... onde isto fica? Como chegar até esses níveis da consciência ou da mente? O que são exatamente esses "demônios" que lá residem? Vamos por partes!

Inácio de Loyola passou a maior parte da sua vida como leigo. A experiência, que estamos analisando aconteceu entre os anos 1521 e 1522, isto é, quando ele tinha 30 e 31 anos de idade. É o tempo da crise da auto-imagem em todos nós, quando percebemos o descompasso entre o "eu real" (condicionado, ferido...) e o "eu original" (livre, sadio...) Essa sensação de frustração se traduz, frequentemente, em insatisfação, culpabilidade, baixa estima e gasto excessivo de energias. Passamos grande parte do tempo, em exames e auto-análises, para entender o que dentro de si acontece.

E o que aconteceu com Ínhigo? Convalescia de suas feridas e das cirurgias para corrigir as sequelas daquela bombarda na sua perna esquerda e como não podia se apoiar nela, ele precisava ficar deitado ou sentado a maior parte do tempo. Ai, ele pensava, se examinava e lia a vida de Jesus e a dos santos... Esse foi o modo que encontrou para entrar no santuário da sua mente. Pensamentos frequentes sobre "assuntos do mundo" e veleidades que se lhe apresentavam: "ficava logo embebido a pensar duas e três e quatro horas sem percebe..." O que ele sentia? "Ficava com isso tão desvanecido... e discorria por muitos assuntos que achava bons... Detinha-se sempre no pensamento que voltava...”, até que um dia "se lhe abriram um pouco os olhos, e começou a maravilhar-se"  com o que estava acontecendo.

Um dos modos para entrar no mais fundo da mente é ficar quieto, concentrado ("embebido, sem perceber...”) Ínhigo fazia isso com certa facilidade! Mas, como foi que ele se aproxima da sua mente pré-consciente e inconsciente, para ficar de tal modo seduzido com o que "sente" e "vê"?

Existe um caminho para mergulhar no pré-consciente e se aproximar do inconsciente? Alguns psicólogos e terapeutas utilizam símbolos, como descer uma escada, entrar num túnel, rampa, poço ou até mergulhar no mais fundo de um lago... Os meios podem ser diversos; o resultado não. O fruto desse mergulho é a experiência de um encontro com o mais profundo de si mesmo.

O caminho usado por Ínhigo foi algo parecido. Ele se confronta, pelas leituras que faz (Evangelho, vida de santos...), com figuras altamente positivas e profundas: Jesus ou alguns santos (Onofre, Francisco ou Domingos...) Espelhando-se neles, ele se vê! Sem quase perceber, mergulha neles e entra em si próprio, alcançando zonas até então desconhecidas. O seu "eu real" (limitado, condicionado, ferido e frágil,) se lhe apresenta com toda crueldade, até sentir-se tentado de se auto-eliminar.

Nesse mergulhar dentro do "eu", passamos, primeiro, pela zona escura, não integrada, onde se esconderam os nossos demônios...”

Esta realidade negativa, sentida e experimentada na oração, é tão viva e pujante, que Inácio precisará partilhá-la, com um confessor. Às vezes precisamos da absolvição dos outros, para nos perdoar!

Devagarinho Inácio chega a se aproximar do seu "eu original", cheio de vida e verdade. Recebe "não pouca luz" (29), e "" com os olhos interiores, "Nossa Senhora com o Menino Jesus", o que lhe dá grande consolação. Sempre que se aproxima desse seu eu profundo, sadio e verdadeiro "ficava contente e alegre". É a percepção da presença do Deus escondido nele! O "eu original" é transparente, sadio, iluminado e livre (32) e sempre que nos aproximamos, dele surgem "imagens simbólicas" de grande significado.

Inácio passa por Montserrat (21/MAR/1522) e confessa seus pecados ao monge beneditino João Cânones. Ao mesmo tempo doa sua mula ao mosteiro e suas belas vestimentas (coloridas e de seda natural!) a um pobre mendigo. Por fim, entrega sua espada e punhal, símbolos da prepotência do homem velho, a os deposita no altar, aos pés de Nossa Senhora. Confessado, despojado e entregue, Inácio fez a experiência do "abaixar-se" realmente, até se tornar um a mais no meio de todos.

Só depois que Inácio vai a Manresa e será lá o encontro mais profundo com o seu lado negativo e positivo. Primeiro, a noite escura da alma: angústia e confusão interior que se manifestam também no seu exterior (deixa os cabelos crescerem demasiadamente e as unhas... Vão ser 10 meses de alternância de moções (consolações e desolações), busca de caminhos, tortura da alma, transformação e alta mística. Aos poucos morre o homem velho (Ínhigo!) e nasce o companheiro de Jesus (Inácio!).

As experiências na solidão de Manresa convertem-se em gesto concreto. O experimentado na oração se traduzirá espontaneamente na vida. Inácio livre de todo poder, começa a caminhar como peregrino... Alguns quando o viam cochichavam: "eis o peregrino, aquele que se tornou louco por amor de Jesus!"

Inácio entra devagarinho no fundo da sua alma ao aproximar-se do seu "eu original". Primeiro passa pela fraqueza e ambiguidade do seu "eu real", seus demônios se disfarçavam em dúvidas espantosas fazendo com que as coisas de Deus perdessem seu atrativo e novidade... Pacientemente revê sua vida, como alguém que desenrola um novelo de lã e descobre emocionado que Jesus sempre o amara... A Luz ilumina suas feridas, cicatrizando-as. Assim, de repente, um belo dia acorda como de um sonho: "como se lhe tirassem dos ombros uma pesada capa" e surpreso exclama emocionado: "Que vida nova é esta que agora começa?"

O "eu real", transcendido, purificado e liberto dos seus condicionamentos, aproximava-se e identificava-se com o "eu original". Nessa máxima identidade, torna-se extremamente sensível ao presente da graça que, irrompe nele como uma enorme cachoeira.

Não só quando reza, mas mesmo quando está nos degraus da igreja dos frades dominicanos, ao som do Angelus, seu espírito se eleva e, através do acorde de três notas do órgão que escutava, contempla, pasmado pela sua gratuidade, o mistério comunitário da Santíssima Trindade. Lágrimas de alegria o inundam! Nova sensibilidade lhe faz perceber dimensões que antes não sentia, nem intuia.

Por fim chega ao auge da iluminação interior com a "Ilustração do Cardoner": todo dom procede do Pai pelo Filho...

A oração de Inácio parece ter superado definitivamente os limites e condicionamentos do seu "eu real" e ter mergulhado de vez no "eu original". É próprio daqueles que entram nesse espaço "ver" o que Inácio via, isto é, luz, transparência, brancura em demasia! A partir desse momento, a oração de Inácio se faz profunda, comprometida, existencial e mística.

Por fim, no dia 18/FEV/1523, Inácio radiante, como um novo Moisés, deixa Manresa e vai para Barcelona, caminho da Itália, de Jerusalém... O mundo todo se lhe abre à sua frente!
                                                                                                                           
Uma pergunta: Você ora em profundidade?

3 comentários:

  1. Bom dia, pe. Ramón. Acabo de ler seu belo artigo e de postá-lo no Blog do Rahner que, como sabemos, era grande mestre da oração, especialmente da inaciana.
    abraço, Jussara

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  2. OI, Ramón!Acabein de ler seu esclarecedor e consolador artigo. Agradeço a Deus por tê-lo criado inteligente , por ter permitido que vc fizesse a experiência Dele e à vc por partilhar conosco tudo isso que o Senhor lhe permite conhecer e viver. Abração. Ernesta

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  3. Pe. Ramón, estou , aqui, refletindo sobre seu texto, que muito me atraiu.
    Há muito tempo, faço os EE.
    Constato que permaneci na superfície, presa ao meu Eu real.
    Agora, estou tendo melhor compreensão...
    Mudarei meu modo de rezar. Quero chegar às profundezas do meu Eu original. Deus me espera lá! Inicio amanhã.

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