O Dia Mundial dos Pobres foi instituído por Francisco, na conclusão do Ano Santo extraordinário da Misericórdia, com uma Carta Apostólica intitulada “Misericórdia e mísera”. A celebração se realizará no XXXIII Domingo do Tempo Comum, que este ano cai em 19/NOV.
MENSAGEM DO SANTO PADRE PARA O I DIA
MUNDIAL DOS POBRES...
1. «Meus filhinhos, não amemos com palavras nem
com a boca, mas com obras e com verdade» (1 Jo 3, 18). Estas palavras
do apóstolo João exprimem um imperativo de que nenhum cristão pode prescindir. A importância do mandamento de
Jesus, transmitido pelo «discípulo amado» até aos nossos dias, aparece ainda
mais acentuada ao contrapor as palavras vazias, que frequentemente se encontram
na nossa boca, às obras concretas, as únicas capazes de medir verdadeiramente o
que valemos. O amor não admite álibis:
quem pretende amar como Jesus amou, deve assumir o seu exemplo, sobretudo
quando somos chamados a amar os pobres.
Aliás, é bem conhecida a forma de amar do Filho de Deus, e João recorda-a com
clareza. Assenta sobre duas colunas mestras: o primeiro a amar foi Deus (cf. 1
Jo 4, 10.19); e amou dando-Se totalmente, incluindo a própria vida (cf. 1 Jo 3,
16).
Um amor assim não pode
ficar sem resposta.
Apesar de ser dado de maneira unilateral, isto é, sem pedir nada em troca, ele
abrasa de tal forma o coração, que toda e qualquer pessoa se sente levada a
retribuí-lo não obstante as suas limitações e pecados. Isto é possível, se a
graça de Deus, a sua caridade misericordiosa, for acolhida no nosso coração a
pontos de mover a nossa vontade e os nossos afetos para o amor ao próprio Deus e ao próximo. Deste modo a misericórdia, que
brota por assim dizer do coração da Trindade, pode chegar a pôr em movimento a
nossa vida e gerar compaixão e obras de misericórdia em prol dos irmãos e irmãs
que se encontram em necessidade.
2. «Quando um pobre invoca o Senhor, Ele
atende-o» (Sal 34/33, 7). A Igreja compreendeu, desde sempre, a
importância de tal invocação. Possuímos um grande testemunho já nas primeiras
páginas do Atos dos Apóstolos, quando Pedro pede para se escolher sete homens «cheios do Espírito e de sabedoria» (6,
3), que assumam o serviço de assistência
aos pobres. Este é, sem dúvida, um dos primeiros sinais com que a
comunidade cristã se apresentou no palco do mundo: o serviço aos mais pobres. Tudo isto foi possível, por ela ter
compreendido que a vida dos discípulos de Jesus se devia exprimir numa
fraternidade e numa solidariedade tais, que correspondesse ao ensinamento
principal do Mestre que tinha proclamado os pobres bem-aventurados e herdeiros
do Reino dos céus (cf. Mt 5, 3).
«Vendiam terras e outros
bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada
um» (At 2, 45). Esta frase mostra, com clareza, como estava viva nos
primeiros cristãos tal preocupação. O evangelista Lucas – o autor sagrado que
deu mais espaço à misericórdia do que qualquer outro – não está a fazer
retórica, quando descreve a prática da partilha na primeira comunidade. Antes
pelo contrário, com a sua narração, pretende falar aos fiéis de todas as
gerações (e, por conseguinte, também à nossa), procurando sustentá-los no seu
testemunho e incentivá-los à ação concreta a favor dos mais necessitados. E o
mesmo ensinamento é dado, com igual convicção, pelo apóstolo Tiago, usando
expressões fortes e incisivas na sua Carta: «Ouvi, meus amados irmãos: porventura não escolheu Deus os pobres
segundo o mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos
que O amam? Mas vós desonrais o pobre. Porventura não são os ricos que vos
oprimem e vos arrastam aos tribunais? (…) De que aproveita, irmãos, que alguém
diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um
irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de
vós lhes disser: “Ide em paz, tratai de vos aquecer e matar a fome”, mas não
lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras,
está completamente morta» (2, 5-6.14-17).
3. Contudo, houve momentos em que os cristãos não escutaram profundamente
este apelo, deixando-se contagiar pela mentalidade mundana. Mas o Espírito
Santo não deixou de os chamar a manterem o olhar fixo no essencial. Com efeito,
fez surgir homens e mulheres que, de
vários modos, ofereceram a sua vida ao serviço dos pobres. Nestes dois mil
anos, quantas páginas de história foram escritas por cristãos que, com toda a
simplicidade e humildade, serviram os seus irmãos mais pobres, animados por uma
generosa fantasia da caridade!
Dentre todos, destaca-se o exemplo de Francisco de Assis, que foi seguido por tantos outros homens e mulheres
santos, ao longo dos séculos. Não se contentou com abraçar e dar esmola aos
leprosos, mas decidiu ir a Gúbio para estar junto com eles. Ele mesmo
identificou neste encontro a viragem da sua conversão: «Quando estava nos meus pecados, parecia-me deveras insuportável ver os
leprosos. E o próprio Senhor levou-me para o meio deles e usei de misericórdia
para com eles. E, ao afastar-me deles, aquilo que antes me parecia amargo
converteu-se para mim em doçura da alma e do corpo» (Test 1-3: FF 110).
Este testemunho mostra a força
transformadora da caridade e o estilo de vida dos cristãos.
Não pensemos nos pobres apenas como destinatários duma boa obra
de voluntariado, que se pratica uma vez por semana, ou, menos ainda, de gestos
improvisados de boa vontade para pôr a consciência em paz. Estas experiências,
embora válidas e úteis a fim de sensibilizar para as necessidades de tantos
irmãos e para as injustiças que frequentemente são a sua causa, deveriam abrir
a um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a uma partilha que se torne
estilo de vida. Na verdade, a oração, o
caminho do discipulado e a conversão encontram, na caridade que se torna
partilha, a prova da sua autenticidade evangélica. E deste modo de viver
derivam alegria e serenidade de espírito, porque se toca palpavelmente a carne de Cristo. Se realmente queremos
encontrar Cristo, é preciso que toquemos
o seu corpo no corpo chagado dos pobres, como resposta à comunhão
sacramental recebida na Eucaristia. O Corpo de Cristo, repartido na sagrada
liturgia, deixa-se encontrar pela caridade partilhada no rosto e na pessoa dos
irmãos e irmãs mais frágeis. Continuam a ressoar de grande atualidade estas
palavras do santo bispo Crisóstomo: «Queres
honrar o corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros,
isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no tempo com
vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez» (Hom. in
Matthaeum, 50, 3: PG 58).
Portanto somos chamados a
estender a mão aos pobres, a encontrá-los, fixá-los nos olhos, abraçá-los, para
lhes fazer sentir o calor do amor que rompe o círculo da solidão. A sua mão
estendida para nós é também um convite a sairmos das nossas certezas e
comodidades e a reconhecermos o valor que a pobreza encerra em si mesma.
4. Não esqueçamos que, para os discípulos de Cristo, a pobreza é, antes de tudo, uma vocação a
seguir Jesus pobre. É um caminhar atrás d’Ele e com Ele: um caminho que
conduz à bem-aventurança do Reino dos céus (cf. Mt 5, 3; Lc 6, 20). Pobreza significa um coração humilde,
que sabe acolher a sua condição de criatura limitada e pecadora, vencendo a
tentação de omnipotência que cria em nós a ilusão de ser imortal. A pobreza é
uma atitude do coração que impede de conceber como objetivo de vida e condição
para a felicidade o dinheiro, a carreira e o luxo. Mais, é a pobreza que cria
as condições para assumir livremente as responsabilidades pessoais e sociais,
não obstante as próprias limitações, confiando na proximidade de Deus e vivendo
apoiados pela sua graça. Assim entendida, a
pobreza é o metro que permite avaliar o uso correto dos bens materiais e
também viver de modo não egoísta nem possessivo os laços e os afetos (cf.
Catecismo da Igreja Católica, n. 2545).
Assumamos, pois, o exemplo de São Francisco, testemunha da
pobreza genuína. Ele, precisamente por ter os olhos fixos em Cristo, soube
reconhecê-Lo e servi-Lo nos pobres. Por conseguinte, se desejamos dar o nosso
contributo eficaz para a mudança da história, gerando verdadeiro
desenvolvimento, é necessário escutar o
grito dos pobres e comprometermo-nos a erguê-los do seu estado de marginalização.
Ao mesmo tempo recordo, aos pobres que vivem nas nossas cidades e nas nossas
comunidades, para não perderem o sentido da pobreza evangélica que trazem
impresso na sua vida.
5. Sabemos a grande dificuldade que há, no
mundo contemporâneo, para se poder identificar claramente a pobreza. E todavia esta interpela-nos todos os dias com os
seus inúmeros rostos vincados pelo sofrimento, a marginalização, a opressão, a
violência, as torturas e a prisão, pela guerra, a privação da liberdade e da
dignidade, pela ignorância e o analfabetismo, pela emergência sanitária e a
falta de trabalho, pelo tráfico de pessoas e a escravidão, pelo exílio e a
miséria, pela migração forçada. A pobreza tem o rosto de mulheres, homens e
crianças explorados para vis interesses, espezinhados pelas lógicas perversas
do poder e do dinheiro. Como é impiedoso e nunca completo o elenco que se é
constrangido a elaborar à vista da pobreza, fruto da injustiça social, da
miséria moral, da avidez de poucos e da indiferença generalizada!
Infelizmente, nos nossos dias, enquanto sobressai cada vez mais
a riqueza descarada que se acumula nas mãos de poucos privilegiados,
frequentemente acompanhada pela ilegalidade e a exploração ofensiva da
dignidade humana, causa escândalo a extensão da pobreza a grandes sectores da
sociedade no mundo inteiro. Perante este cenário, não se pode permanecer inerte
e, menos ainda, resignado. À pobreza que inibe o espírito de iniciativa de
tantos jovens, impedindo-os de encontrar um trabalho, à pobreza que anestesia o
sentido de responsabilidade, induzindo a preferir a abdicação e a busca de
favoritismos, à pobreza que envenena os poços da participação e restringe os
espaços do profissionalismo, humilhando assim o mérito de quem trabalha e
produz: a tudo isso é preciso responder com uma nova visão da vida e da
sociedade.
Todos estes pobres – como gostava de dizer o Beato Paulo VI
– pertencem à Igreja por «direito
evangélico» (Discurso de abertura na II Sessão do Concílio Ecuménico
Vaticano II, 29/IX/1963) e obrigam à
opção fundamental por eles. Por isso, benditas as mãos que se abrem para
acolher os pobres e socorrê-los: são mãos que levam esperança. Benditas as mãos que superam toda a
barreira de cultura, religião e nacionalidade, derramando óleo de consolação
nas chagas da humanidade. Benditas as mãos que se abrem sem pedir nada em
troca, sem «se» nem «mas», nem «talvez»: são mãos que fazem descer sobre os
irmãos a bênção de Deus.
6. No termo do Jubileu da Misericórdia, quis oferecer à Igreja o Dia Mundial dos
Pobres, para que as comunidades cristãs se tornem, em todo o mundo, cada
vez mais e melhor sinal concreto da
caridade de Cristo pelos últimos e os mais carenciados. Quero que, aos
outros Dias Mundiais instituídos pelos meus Antecessores e sendo já tradição na
vida das nossas comunidades, se acrescente este, que completa o conjunto de
tais Dias com um elemento requintadamente evangélico, isto é, a predileção de
Jesus pelos pobres.
Convido a Igreja inteira e os homens e mulheres de boa vontade a
fixar o olhar, neste dia, em todos aqueles que estendem as suas mãos invocando
ajuda e pedindo a nossa solidariedade. São
nossos irmãos e irmãs, criados e amados pelo único Pai celeste. Este Dia
pretende estimular, em primeiro lugar, os crentes, para que reajam à cultura do
descarte e do desperdício, assumindo a cultura do encontro. Ao mesmo tempo, o convite é dirigido a todos,
independentemente da sua pertença religiosa, para que se abram à partilha com
os pobres em todas as formas de solidariedade, como sinal concreto de fraternidade.
Deus criou o céu e a terra para todos; foram os homens que, infelizmente,
ergueram fronteiras, muros e recintos, traindo o dom originário destinado à
humanidade sem qualquer exclusão.
7. Desejo que, na semana anterior ao Dia Mundial dos Pobres – que este ano será no
dia 19 de novembro, XXXIII domingo do Tempo Comum –, as comunidades cristãs se empenhem na criação de muitos momentos de
encontro e amizade, de solidariedade e ajuda concreta. Poderão ainda
convidar os pobres e os voluntários para participarem, juntos, na Eucaristia
deste domingo, de modo que, no domingo seguinte, a celebração da Solenidade de
Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo resulte ainda mais autêntica. Na
verdade, a realeza de Cristo aparece em todo o seu significado precisamente no
Gólgota, quando o Inocente, pregado na cruz, pobre, nu e privado de tudo,
encarna e revela a plenitude do amor de Deus. O seu completo abandono ao Pai,
ao mesmo tempo que exprime a sua pobreza total, torna evidente a força deste
Amor, que O ressuscita para uma vida nova no dia de Páscoa.
Neste domingo, se viverem
no nosso bairro pobres que buscam proteção e ajuda, aproximemo-nos deles:
será um momento propício para encontrar o Deus que buscamos. Como ensina a
Sagrada Escritura (cf. Gn 18, 3-5; Heb 13, 2), acolhamo-los como hóspedes
privilegiados à nossa mesa; poderão ser mestres, que nos ajudam a viver de
maneira mais coerente a fé. Com a sua confiança e a disponibilidade para
aceitar ajuda, mostram-nos, de forma sóbria e muitas vezes feliz, como é
decisivo vivermos do essencial e abandonarmo-nos à providência do Pai.
8. Na base das múltiplas iniciativas
concretas que se poderão realizar neste Dia, esteja sempre a oração. Não
esqueçamos que o Pai Nosso é a oração
dos pobres. De facto, o pedido do pão exprime o abandono a Deus nas
necessidades primárias da nossa vida. Tudo o que Jesus nos ensinou com esta
oração exprime e recolhe o grito de quem sofre pela precariedade da existência
e a falta do necessário. Aos discípulos que Lhe pediam para os ensinar a rezar,
Jesus respondeu com as palavras dos pobres que se dirigem ao único Pai, em quem
todos se reconhecem como irmãos. O Pai Nosso é uma oração que se exprime no
plural: o pão que se pede é «nosso», e
isto implica partilha, comparticipação e responsabilidade comum. Nesta
oração, todos reconhecemos a exigência de superar qualquer forma de egoísmo,
para termos acesso à alegria do acolhimento recíproco.
9. Aos irmãos bispos, aos
sacerdotes, aos diáconos – que, por vocação, têm a missão de apoiar os pobres
–, às pessoas consagradas,
às associações, aos movimentos e ao vasto mundo do voluntariado, peço que se comprometam para que, com este
Dia Mundial dos Pobres, se instaure uma tradição que seja contribuição
concreta para a evangelização no mundo contemporâneo.
Que este novo Dia Mundial se torne, pois, um forte apelo à nossa
consciência crente, para ficarmos cada vez mais convictos de que partilhar com
os pobres permite-nos compreender o Evangelho na sua verdade mais profunda. Os pobres não são um problema: são um
recurso de que lançar mão para acolher e viver a essência do Evangelho.
Vaticano, Memória de Santo António de Lisboa,
13 de junho de 2017.
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