— Há cristãos que parecem ter escolhido viver
uma Quaresma sem Páscoa. Reconheço, porém, que a alegria não se vive
da mesma maneira em todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes muito
duras. Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos como um feixe
de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos
infinitamente amados.
— Posso dizer
que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo da minha
vida, são as alegrias de pessoas muito
pobres que têm pouco a que se agarrar.
— Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais do que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza
para além de nós mesmos a fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro.
Aqui está a fonte da ação evangelizadora. Porque, se alguém acolheu este amor
que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o
comunicar aos outros?
— Penso, aliás,
que não se deve esperar do magistério papal uma palavra
definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao
mundo. Não convém que o Papa
substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas
que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma salutar «descentralização».
— Com obras e
gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros,
encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e
assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os evangelizadores contraem assim o «cheiro
de ovelha», e estas escutam a sua voz.
— Sonho com uma
opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos,
os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal
proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à auto-preservação. A
reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode
entender neste sentido: fazer com que
todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as
suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes
pastorais em atitude constante de
«saída» e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem
Jesus oferece a sua amizade.
— Dado que sou
chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também numa conversão do papado. Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer aberto às
sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao
significado que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades atuais da
evangelização.
— No seu
constante discernimento, a Igreja pode chegar também a reconhecer costumes
próprios não diretamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns muito radicados
no curso da história, que hoje já não são interpretados da mesma maneira e cuja
mensagem habitualmente não é percebida de modo adequado. Podem até ser belos,
mas agora não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não tenhamos
medo de os rever! Da mesma forma, há
normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas,
mas já não têm a mesma força educativa como canais de vida.
— Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara
de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível.
Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais
agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus
dias sem enfrentar sérias dificuldades.
— A Igreja «em saída» é uma Igreja com as portas abertas. Sair em direção aos outros
para chegar às periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direção
nem sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade
para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem
ficou caído à beira do caminho. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que
continua com as portas abertas para, quando este voltar, poder entrar sem
dificuldade.
— Se a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há-de chegar a todos, sem
exceção. Mas, a quem deveria
privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara:
não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes,
àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com
que te retribuir» (Lc 14, 14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações
que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho», e a
evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio
trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe
um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos
jamais sozinhos!
— Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas
estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às
próprias seguranças. Não quero uma
Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de
obsessões e procedimentos.
— Assim como o
mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana,
assim também hoje devemos dizer «não a
uma economia da exclusão e da desigualdade social». Esta economia mata. Não
é possível que a morte por enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia,
enquanto o é a descida de dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode
tolerar mais o fato de se lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam
fome. Isto é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e
da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência
desta situação, grandes massas da população vêm-se excluídas e marginalizadas:
sem trabalho, sem perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado,
em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora.
Assim teve início a cultura do «descartável», que aliás chega a ser
promovida. Já não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão,
mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à
sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder
já não está nela, mas fora. Os excluídos não são «explorados», mas resíduos,
«sobras».
— Hoje, em muitas partes, reclama-se maior
segurança. Mas, enquanto
não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os
vários povos será impossível desarreigar a violência. Acusam-se da violência
os pobres e as populações mais pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as
várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais
cedo ou mais tarde, há de provocar a explosão. Quando a sociedade – local,
nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há
programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam
garantir indefinidamente a tranquilidade.
— O individualismo
pós-moderno e globalizado
favorece um estilo de vida que debilita o desenvolvimento e a estabilidade dos
vínculos entre as pessoas e distorce os
vínculos familiares. A ação pastoral deve mostrar ainda melhor que a
relação com o nosso Pai exige e incentiva uma comunhão que cura, promove e
fortalece os vínculos interpessoais. Enquanto no mundo, especialmente nalguns
países, se reacendem várias formas de guerras e conflitos, nós, cristãos, insistimos na proposta de reconhecer o outro, de curar
as feridas, de construir pontes, de estreitar laços e de nos ajudarmos «a
carregar as cargas uns dos outros» (Gl 6, 2).
— Há certo cristianismo feito de devoções – próprio duma vivência individual e
sentimental da fé – que, na realidade, não
corresponde a uma autêntica «piedade popular». Alguns promovem estas
expressões sem se preocupar com a promoção social e a formação dos fiéis,
fazendo-o nalguns casos para obter benefícios económicos ou algum poder sobre
os outros.
— A nossa tristeza e vergonha pelos pecados de alguns membros da Igreja, e
pelos próprios, não devem fazer esquecer os inúmeros cristãos que dão a vida
por amor: ajudam tantas
pessoas seja a curar-se seja a morrer em paz em hospitais precários, acompanham
as pessoas que caíram escravas de diversos vícios nos lugares mais pobres da
terra, prodigalizam-se na educação de crianças e jovens, cuidam de idosos
abandonados por todos, procuram comunicar valores em ambientes hostis, e
dedicam-se de muitas outras maneiras que mostram o imenso amor à humanidade inspirado
por Deus feito homem. Agradeço o belo exemplo que me dão tantos cristãos que
oferecem a sua vida e o seu tempo com alegria.
— Uma das
tentações mais sérias que sufoca o fervor e a ousadia é a sensação de derrota
que nos transforma em pessimistas lamurientos e
desencantados com cara de vinagre.
— O mundanismo
espiritual, que se esconde por detrás de aparências de religiosidade e até
mesmo de amor à Igreja, é buscar, em vez
da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal.
— Ser Igreja significa ser povo de Deus, de
acordo com o grande projeto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento de Deus
no meio da humanidade; quer dizer anunciar
e levar a salvação de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se sente
perdido, necessitado de ter respostas que encorajem, deem esperança e novo
vigor para o caminho. A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde
todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem
segundo a vida boa do Evangelho.
— Não podemos pretender que todos os povos dos vários continentes, ao exprimir a fé
cristã, imitem as modalidades adoptadas
pelos povos europeus num
determinado momento da história, porque a fé não se pode confinar dentro dos
limites de compreensão e expressão duma cultura. É indiscutível que uma única cultura não esgota o mistério da redenção
de Cristo.
— A homilia
não pode ser um espetáculo de divertimento, não corresponde à lógica dos recursos mediáticos, mas deve dar fervor e significado à
celebração. É um género peculiar, já que se trata de uma pregação no quadro
duma celebração litúrgica; por conseguinte, deve ser breve e evitar que se
pareça com uma conferência ou uma lição.
— Peço a Deus
que cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo
que vise efetivamente sanar as raízes profundas e não a aparência dos males do
nosso mundo. A política, tão denegrida,
é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas da caridade, porque
busca o bem comum. Temos de nos convencer que a caridade «é o princípio não
só das micro relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo,
mas também das macro relações como relacionamentos sociais, económicos,
políticos». Rezo ao Senhor para que nos
conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo,
a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o poder financeiro
levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho
digno, instrução e cuidados sanitários para todos os cidadãos. E porque não
acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos? Estou convencido de
que, a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma nova
mentalidade política e económica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta
entre a economia e o bem comum social.
— A primeira motivação para
evangelizar é o amor que
recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele que nos impele a amá-Lo cada vez mais. Com
efeito, um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de a
apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria?
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