Configurados a Cristo... (cf. Pe. Carlos Palacio SJ)



A perspectiva e os pressupostos da experiência de Inácio colocam-nos, à primeira vista, nos antípodas do que hoje chamar-se-ia uma "cristologia indutiva". É inútil querer fazer do "Jesus histórico" o princípio hermenêutico da cristologia dos Exercícios ou enquadrá-la dentro da categoria das "cristologias descendentes"19. Por outro lado, é evidente a importância da vida de Jesus nos Exercícios. A sua humanidade é o lugar da contemplação, a porta de acesso à experiência de Deus. Donde lhe vem esta importância? É aí que aparece a fecundidade teológica da visão unitária - concreta e indivisível - de Jesus Cristo, subjacente à contemplação inaciana dos "mistérios".


a) Que são os "mistérios"? Não é este o momento de acompanhar todas as vicissitudes históricas deste tema. Digamos, de saída, que, na sua origem, ele tinha uma densidade teológica que não se encontrará depois, nem nos tratados de cristologia nem na derivação ulterior para o campo da espiritualidade.

 

A significação do termo é inseparável do horizonte no qual desenvolviam-se o discurso bíblico e a reflexão teológica dos primeiros séculos: a perspectiva histórico-salvífica ou a oikonomia, como chamavam-na os Padres. O plano de salvação de Deus - que Paulo designa como "mysterion" (Cl 1, 26) - foi desvelado e tornou-se visível no "mistério de Cristo" (Ef 3, 4).

 

Mas este "mistério fontal" que é Jesus, transparece e concretiza-se em cada um dos momentos da sua vida, morte e ressurreição. A unidade do "mistério" desdobra-se e multiplica-se na diversidade dos seus gestos e palavras. Todos os acontecimentos dos quais Jesus foi sujeito - ativo ou passivo - são "mistérios", isto é, expressões visíveis (encarnações na sua existência concreta) do "mistério" único e invisível que é Jesus Cristo.

 

A vida de Jesus constitui o lugar definitivo da revelação de Deus e do seu plano salvífico. É por isso que o "mistério" do Verbo encarnado foi desde o início o "lugar teológico" por excelência da celebração litúrgica, da pregação, da catequese e da reflexão teológica.

 

É na esteira desta grande tradição que se situa Inácio. A sua originalidade consiste em ter recuperado de novo esta visão concreta e indivisível da figura de Jesus Cristo. O seu apego à humanidade de Jesus é uma intuição profundamente teológica. É na humildade da carne que transparece o excesso de sentido da existência de Jesus. Esta unidade diferenciada mas indivisível - humano e divino, terrestre e glorificado etc. - é que Inácio designa com a palavra "mistério" ou "mistérios". O "mistério" fontal é o fazer-se homem do Filho eterno de Deus. É o mistério da encarnação. Mas entendida não como um acontecimento "pontual" e maravilhoso, no início da vida de Jesus, e sim como processo, como explicitação histórica do que significa - do que manifesta e revela - este fazer-se homem de Cristo.

 

A novidade desta perspectiva só será justamente apreciada por quem conhece as consequências que teve para a cristologia sistemática o abandono desta "cristologia concreta". A perda da perspectiva histórica afetaria não só a cristologia como também a imagem cristã de Deus. A própria experiência cristã, como um todo, ressentir-se-ia desta ausência da dimensão histórica. A emigração desta temática para a espiritualidade, sobretudo a partir da época moderna, nunca conseguiu restabelecer o equilíbrio teológico que lhe era característico na sua origem. Por isto, a riqueza e a profundidade teológicas da experiência. inaciana não podem ser interpretadas a partir da teologia escolar. É uma experiência que tem que ser interpretada a partir dos pressupostos que ela mesma se dá.

 

b) O lugar dos "mistérios" na experiência. A partir da segunda semana, o conteúdo das contemplações é a "vida de Cristo" ou, na linguagem preferida de Inácio, os "mistérios da vida de Cristo nosso Senhor" (EE  261). Segunda, terceira e quarta semanas seguem o ritmo da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Duas coisas, contudo, chamam logo a atenção: a extensão bem maior e a organização minuciosa da segunda (em contraste com a sóbria explicitação das outras duas) e a diferença no modo de tratar os "mistérios" no corpo dos Exercícios e no anexo final (EE  261-312). Dupla constatação que nos oferece pistas para interpretar o lugar e a função dos "mistérios".

 

O caráter estruturado da segunda semana é algo que salta aos olhos. É evidente que existe uma revelação entre as chamadas "meditações inacianas" (rei temporal, duas bandeiras, três binários e três modos de humildade) e os "mistérios" contemplados. Mais surpreendente ainda é a meticulosidade com a qual Inácio organiza os conteúdos da oração, as suas formas e ritmos, as indicações de tipo prático. Nada disto encontra-se nas outras duas semanas. Nelas, depois de uma primeira contemplação mais explicitada  e algumas observações sobre o modo de proceder, Inácio limita-se a indicar o "mistério" que deve ser contemplado. O que parece indicar as funções diferentes dos "mistérios" em cada semana. Uma coisa é certa: a contemplação não é anárquica, nem a seleção dos "mistérios" é entregue à arbitrariedade do sujeito.

 

A estrutura da segunda semana parece determinada pela articulação entre a história do exercitante e a história de Jesus Cristo. A primeira constitui o pólo subjetivo ou a referência à liberdade pessoal. De fato, o que está em jogo em cada uma das "meditações inacianas" é a interpelação da liberdade do exercitante. Sob a forma de apelo e desafio (rei temporal); como experiência da divisão e do conflito, pessoal e social (duas bandeiras); como descoberta dos mecanismos de auto-justificação que limitam e condicionam as nossas opções (três binários ou categorias de homens) e, portanto, como a desapropriação e o despojamento necessários para chegar a uma liberdade real e "ab-soluta", sem a qual não pode haver adesão à vontade de Deus (três modos de humildade ou graus de amor).

 

A originalidade de Inácio consiste em ter articulado de maneira inseparável os momentos do itinerário pessoal do exercitante na sua busca da vontade de Deus (processo de libertação que deve desembocar na eleição) e as etapas da vida de Jesus Cristo. Esta referência à história de Jesus é o pólo objetivo da experiência da segunda semana. Contemplar Jesus Cristo é ver o caminho através do qual uma liberdade concreta - a de Jesus - configurou efetivamente a sua vida segundo uma lógica diferente daquela que impera entre os homens. Ele é o pioneiro porque inaugura um começo novo e torna possível uma maneira diferente de estar presente nessa história. O confronto com a vida de Jesus ilumina o que o exercitante vive, e interpela, ao mesmo tempo, a sua maneira de viver o processo.

 

A força da intuição inaciana reside na articulação rigorosa e coerente destes dois pólos, subjetivo e objetivo. As "meditações inacianas" são como a coluna vertebral, o fio condutor para organizar os "mistérios" que devem ser contemplados. Estes, por sua vez, oferecem o conteúdo objetivo para a contemplação. A íntima relação entre ambos aparece claramente no "preâmbulo para considerar estados" (EE 135): "começaremos agora, ao mesmo tempo (juntamente, como diz o texto autógrafo) que contemplamos a sua vida, a investigar e a perguntar (o autógrafo diz "demandar") em que vida ou estado quer servir-se de nós sua divina Majestade".

 

A eleição constitui, de fato, o término da segunda semana. Tudo converge para ela e ela oferece o critério decisivo para continuar ou não os Exercícios. O processo de discernimento da vontade concreta de Deus sobre a própria vida, culmina na eleição. Optar é o ato pelo qual o exercitante é capaz de dizer "sim" a Deus, de consentir livremente à sua vontade. Mas não se chega aí por um processo puramente racional. À medida que contempla, o exercitante é trabalhado pelo confronto com Jesus Cristo e provocado pela sua maneira de viver.

 

Eis porque o processo da eleição é co-extensivo à contemplação da vida de Cristo24. É no nível dos "desejos" e das "atrações" profundas que o exercitante tem que ser "afetado". A eleição, em certo sentido, é o resultado para o qual convergem o esforço do exercitante para interpretar com lucidez a sua situação (etapas do processo vivido) e uma identificação cada vez mais "cordial" com a vida e estilo de Jesus. É a adesão do coração ou o "deixar-se afetar" inaciano (EE 164).

 

Tudo indica que a seleção dos "mistérios", no corpo dos Exercícios, está relacionada com este processo. O método torna-se cada vez mais flexível. É preciso respeitar a evolução e as necessidades do exercitante. O ritmo da oração é modificado. A contemplação concentra-se num só "mistério" que polariza a atenção da pessoa e facilita o discernimento. Simplificação que visa a interiorização e a unificação do processo de eleição. Por isto, a escolha dos "mistérios" é orientada com todo cuidado, tendo presente a evolução da liberdade do exercitante. Porque a sua decisão amadurece "vendo", o caminho da obediência incondicional de Jesus ao Pai.

 

A eleição parece explicar, portanto, a diferença entre a função dos "mistérios" na segunda semana e nas outras duas. Os Exercícios não terminam com a eleição nem esta pode ser considerada como a sua finalidade última. Feita a eleição, isto é, recuperada a liberdade de aderir sem condições à vontade de Deus, o exercitante começa a descobrir que "viver em Cristo" é uma "páscoa". A eleição se faz "no caminho" (EE 192), como passagem incessante da morte para a vida. É a função da terceira e quarta semanas. Em ambas, Inácio parece adotar o princípio de uma "leitura contínua" para a contemplação dos "mistérios". Não há mais lugar para a seleção dos "mistérios"Acabou o tempo da busca e do discernimento. A decisão de "seguir" já foi tomada, mas o caminho continua, pois só a vida pode oferecer um conteúdo concreto para o seguimento. Contemplar Jesus neste momento é descobrir o que significa ser "incorporado", com todas as consequências, na sua morte e ressurreição. O mistério de Jesus invade totalmente o horizonte da contemplação.

 

c) O papel da contemplaçãoA contemplação é o lugar da articulação. A história de Jesus, em cada um dos seus acontecimentos, ressoa como palavra que interpela a liberdade do exercitante. A contemplação vai realizando a síntese. O "mistério" torna-se presente, atual. E quem contempla vai sendo "configurado"pela vida de Jesus até que ela estruture toda a sua existência.

 

Contra qualquer tentação de subjetivismo ou de falsas interiorizações, a contemplação inaciana está marcada pela objetividade da história. Trazer a história (EE 102; 191) é "fazer-se presente" aos acontecimentos (EE 114). O que significa esta simultaneidade? É um esforço puramente subjetivo da imaginação?

 

Para entender a importância deste "realismo" é preciso ter presente a visão unitária que tem Inácio do "mistério" de Jesus Cristo em todas as suas dimensões: passado e presente, terrestre e exaltado, humano e divino. É o Cristo vivo, presente e atual pelo seu Espírito

 

Neste apego à história de Jesus há uma rica intuição teológica: esta "humanidade" será sempre a porta de acesso ao "mistério" de Jesus. "Jerusalém" é o símbolo de uma descoberta: a importância da humanidade concreta de Jesus. Fazer-se presente aos acontecimentos não é reconstrução quimérica, mas descobrir a atualidade e, por isso, a significação permanente desta história.

 

A simultaneidade é, portanto, a experiência de ser contemporâneo de Jesusnão é um exercício de imaginação ativa, mas realismo da fé contemplativa. Experiência da presença real do Cristo que se faz evidente nos Colóquios, quando o exercitante estabelece uma relação pessoal com "as três pessoas divinas", com o Verbo encarnado ou com a Mãe e Senhora nossa (EE 109). E a prova de que a pessoa não se ilude é o realismo da resposta. Todo lugar é um "lugar santo". Ir a Jerusalém significa entrar decididamente no caminho do seguimento. O "mistério" se torna atualidade viva quando o exercitante consente que a sua história seja "configurada" pela história de Jesus.

 

O confronto com a vida de Jesus torna-se uma palavra que interpela. A articulação do pólo subjetivo (liberdade) e do pólo objetivo (história de Jesus) impede uma contemplação neutra e distante. Cada "mistério", cada acontecimento da vida de Jesus, cada situação, possui um poderoso potencial de questionar a vida do exercitante. Contemplar é correr o risco de ser desmascarado por Jesus. A sua vida se torna um convite a segui-lo (EE 95), um apelo a entrar pelo mesmo caminho e percorrê-lo com Ele até o fim.

 

A resposta não se decide no nível das análises teóricas ou dos sonhos e projetos utópicos, mas no terreno concreto da história - pessoal e social - na qual toma corpo o seguimento. A contemplação de Jesus Cristo(ver) torna-se uma palavra (ouvir) que desencadeia um processo. No esforço de perscrutar esta vida para captar a sua lógica interna e desentranhar o seu sentido, o exercitante é obrigado a ir refazendo o seu mundo(humano e espiritual, pessoal e social) e a recriar a sua história. Assim irá descobrindo como se concretiza na sua vida o seguimento de Jesus. É a passagem do "imaginário" ao "real", da história tal como nós a imaginamos (ou gostaríamos que fosse) à história recriada em Cristo. Só que a possibilidade que Ele nos abre de começar uma história nova, diferente, introduz na vida uma lógica paradoxal que, mais cedo ou mais tarde, fará explodir o nosso "mundo" e a sua lógica.

 

É o processo de "configuração" do exercitante. A sua vida vai sendo modelada pela de Jesus. Não se trata de uma simples imitação ou de uma interiorização subjetiva. A configuração é real quando a "figura" de Jesus(isto é, a síntese viva entre o que Ele é e a sua expressão visível) torna-se "inspiradora" e suscita nova vida, quando ela se torna o princípio e o critério que estruturam a existência. Seguir não é uma imitação anacrônica. Seguir é "re-criar" o caminho de Jesus pela força do seu Espírito.

 

Por isto, o lugar do seguimento é a história real do exercitante. Deixar-se configurar por Cristo e com Cristo. Verdadeiro "re-nascer" que levou Paulo a definir a existência cristã em termos de gestação de Cristo em nós (Gl 4, 19) ou de nova criatura que emerge por entre os escombros do "homem velho" (2 Cor 4, 16-5, 7) até atingir plenamente a estatura perfeita de Cristo (Ef 4, 13).

 

Estas coordenadas, presentes em cada contemplação, situam o exercitante como ser enraizado no mundo e exposto a todos os condicionamentos desta sua "situação". Delas vêm-lhe, ao mesmo tempo, os verdadeiros desafios que interpelam a sua liberdade e a sua responsabilidade diante desta realidade. É esta totalidade - pessoal e social - que deve ser "configurada". À medida que contempla, deverão ir sendo transformadas a sua percepção da realidade e a maneira de estar presente nela. É a contemplação que opera esta "trans-formação" progressiva. A "forma" de Cristo passa a ser o modo como o exercitante passa a "ver", "sentir", "interpretar" e "situar-se" na realidade. Mas o conteúdo vem-lhe da vida. É aí que se realiza a "decisão" de segui-lo.

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