CARTA IMAGINÁRIA DO PAPA JOÃO 24... (B. HÄRING)

 


Escrevendo em 1993, o Pe. alemão Bernhard Häring (1912-1998) imaginou uma carta escrita por um novo Papa que, continuando o espírito do Concílio, decidiu chamar-se João XXIV. O seu primeiro ato, pois, foi escrever uma carta a todos para comunicar as inovações que pretendia introduzir imediatamente na Igreja Católica.

Carta Pastoral de João XXIV, no principio do terceiro milênio.

 

Caríssimas irmãs, caríssimos irmãos em Cristo!

Hoje a Cristandade, na sua viagem de povo peregrino, entra no 3º milênio. A Igreja tem diante de si, muitos problemas candentes. Mas a nossa esperança é o Senhor da história com as suas promessas e a sua graça. Nós nos confiamos ao Seu Espírito com humildade e com grande confiança.

 

Prometemos solenemente, com as mesmas palavras de João Paulo I, “não trair a ardente e íntima oração de Jesus ao Pai, o seu testamento, na noite da última ceia, o seu mandamento mais importante: “faz com que todos sejam uma só coisa: como Tu, Pai, estás em mim e eu em Ti, também eles estejam em nós. Assim o mundo acreditará que Tu me enviaste” (Jo 17,21)”.

 

Com o Concílio convocado pelo Papa XXIII, surgiu uma nova aurora. Entramos na era do ecumenismo. O seu sucessor, Paulo VI, continuou sua obra com sabedoria e humildade. Diante do Conselho Mundial das Igrejas, ele teve a coragem de dizer que o Papado, na sua forma nascida de uma dramática história, podia ser um grave obstáculo à tão desejada unidade das Igrejas.

 

O seu amável sucessor, João Paulo I, com surpreendente clarividência, indicou, na colegialidade viva e operante entre Papa e Bispos, “a prova e o selo da catolicidade no caminho da unidade das Igrejas”. Entrementes, muitos passos foram dados, mas muito ainda resta a fazer. É muito importante não deixar passar a hora da graça!

 

Um passo indispensável é, agora, uma reflexão humilde, solidária e corajosa sobre a história do Papado em relação à unidade das Igrejas. Devemo-nos colocar todos diante do Senhor comum e refletir, à luz da Palavra de Deus e da antiquíssima tradição, sobre o ministério petrino desejado pelo próprio Cristo.

 

O segundo milênio trouxe-nos as separações entre as Igrejas. As causas e as responsabilidades foram diversas, não tendo, com certeza, sido a última, nem a menos importante, uma concepção demasiadamente mundana do poder e do ministério na Igreja. Uma grande nuvem coletiva obscureceu os corações e a inteligência de muitos.

 

Lembrando todas essas coisas, não podemos não chorar todos juntos. Mas devemos também lembrar o bem e os passos dados na direção certa e admitir que nem sequer a sapiência dos Papas, dos Bispos e dos outros Dirigentes de Igrejas foram capazes de modificar as estruturas que impediam a reconciliação completa. E, por longo tempo, as Igrejas separadas não se reconheciam sequer como Igrejas irmãs, e viviam fechadas cada uma em sua torre de defesa.

 

Deus, grande e misericordioso, seja bendito pelo sopro de Seu Espírito que fez renascer um grande desejo em todas as partes da Cristandade. Todos os passos dados até agora são dom gratuito da Sua misericórdia.

 

A conversão ecumênica reforçou e promoveu um espírito de diálogo, de respeito, e de busca conjunta da verdade. Apesar do pleno conhecimento das dificuldades ainda existentes, proponho hoje alguns pontos para a vida da Igreja Católica, tendo em vista a tão desejada unidade dos cristãos:

 

1 – Já que o trono, a tiara e os títulos pomposos eram sintomas de patologias profundas e causa de irritação entre Igrejas irmãs, proíbo energicamente que se chame o Papa com títulos como “Sua Santidade”. E nem sequer o título de Santo Padre me agrada, pois Jesus, na Sua Grande oração pela Unidade, chama Seu Pai de “Pai Santo” (Jo, 17, 11). Esperamos que, no futuro, jamais alguém se permita chamá-lo “Santíssimo”, ou “Beatíssimo”.

 

2 – Não existirão mais os chamados “prelados de honra de Sua Santidade”. Os cardeais da Igreja Romana não se vestirão de púrpura “com fazem os ricos”. No Vaticano não mais títulos como “Eminência” ou “Excelência”. Somos todos irmãos em torno de Cristo, humilde servo de Deus, que se fez homem para a nossa salvação.

 

3 – Os diversos diálogos interconfessionais das últimas décadas produziram resultados surpreendentes. Ouvindo juntos a Palavra de Deus, conseguimos remover muitos obstáculos sendo, por isso, chegada a hora de pôr fim a todas as consequências possíveis e dar passos decisivos, rumo à unidade e à reconciliação, numa fecunda diversidade

 

4- – Como sinal desse renovado fervor, o “Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos” será elevado ao nível dos mais importantes Dicastérios Romanos, melhor ainda, tornar-se-á Congregação, com a específica competência de criar e animar estruturas capazes de favorecer o processo e o acolhimento dos resultados provenientes dos diálogos interconfessionais, em estreita colaboração com as Conferências Episcopais e as Faculdades Teológicas de todo o mundo. 

 

5 – O Papa propõe-se a fazer todo o possível para tornar viva e operante a Colegialidade em todos os níveis. Para recuperar as estruturas sinodais do primeiro milênio, muito teremos a aprender das Igrejas irmãs que conservaram e desenvolveram com muita eficácia aquelas estruturas.

 

6 – Tendo em vista a função ecumênica do Bispo de Roma, todas as Conferências Episcopais e todos os Patriarcados participarão da eleição dele. As modalidades exatas serão determinadas pelo próximo Sínodo dos Bispos.

 

7 – O mesmo Sínodo decidirá sobre a função e o futuro do “corpo diplomático”. Até mesmo o nome não é mais aceitável. As Igrejas não podem definir-se como instituição diplomática. Bem ao contrário, precisamos é de organismos completamente diferentes, que sirvam para a missão da Igreja na promoção da Paz e da Justiça.

 

Em relação a tudo aquilo que se refere à ligação e à comunicação contínua entre o Bispo de Roma e as Igrejas locais, serão encontrados modelos semelhantes aos do primeiro milênio.

 

8 – Uma ponderada interpretação teológica do primado do Papa, feita à luz da Palavra de Deus e dos documentos dos Concílios, demonstrou que o magistério e o governo do Papa só estão plenamente integrados no interior da Igreja. Motivo pelo qual o Papa não é um mestre de fé de fora para dentro ou de cima para baixo. Ele faz parte dos discípulos reunidos em torno de Cristo, único Mestre, e faz parte tanto da “Igreja Docente” quanto da “Igreja Discente”.

 

No exercício de sua atividade pastoral para a Igreja Universal, ele é obrigado a seguir o exemplo do humilde Servo de Deus, Jesus Cristo. Por isso, ele observará escrupulosamente o principio da subsidiariedade.

 

9 – O Papa tem o direito de saber o que se crê na Igreja, com sinceridade de consciência e com a liberdade dos filhos de Deus. Não poderá exercer o seu magistério e ministério da unidade se não existir um amplo espaço de diálogo franco e sincero dentro da Igreja.

 

É por isso que, certo de poder contar com consenso dos irmãos Bispos, faço abolir, com efeito imediato, o que, no Código de Direito Canônico (can. 1371, item 1), está prescrito sobre punibilidade do não assentimento em relação aos documentos não infalíveis do Papa. (Cân. 1371 — Seja punido com justa pena: 1) quem, fora do caso previsto no cân. 1364 § 1, ensinar uma doutrina condenada pelo Romano Pontífice ou pelo Concílio Ecuménico, ou rejeitar com pertinácia a doutrina referida no cân. 750 § 2 ou no cân. 752, e, admoestado pela Sé Apostólica ou pelo Ordinário, não se retrata.

 

10 – Além da comum profissão de fé e dos votos ou promessas batismais, não se farão mais, na Igreja Católica, juramentos particulares de fidelidade e lealdade. Basta seguir a palavra firme de Jesus: “Seja o vosso falar: Sim, sim; Não, não. Tudo o que disso passa, procede do maligno” (Mt. 5,37).

Já que vivemos da contínua antecipação de confiança que nos é concedida por Deus, também nós faremos todo o possível para criar uma atmosfera de confiança recíproca. Por este motivo, estão abolidos todos os instrumentos de controle e se criará um clima de confiança uns nos outros.

 

11 – Todos os problemas polêmicos, como, por exemplo, a função da mulher na Igreja, a participação das mulheres nos processos decisórios de toda a Igreja e uma eventual ordenação das mulheres para o sacerdócio ministerial, serão discutidos no diálogo ecumênico e dentro da Igreja com franqueza, respeito e paciência. E a decisão final terá caráter estritamente colegial.

 

12 – A Cristandade inteira, todos os discípulos de Cristo, juntos, são chamados a ser luz do mundo, sacramento de paz, de justiça, de salvação e de cura. Por isso, buscaremos um diálogo respeitoso com todas as religiões não-cristãs, mais ainda, com todos os homens de boa vontade.

 

Perscrutando os sinais dos tempos, daremos especial atenção ao evangelho da paz e ao caminho da não-violência, a exemplo de Jesus, aproveitando também, com muita alegria, tudo o que a graça de Deus operou, em relação a isto, entre as religiões não-cristãs.

 

Recomendo a minha pessoa e o meu ministério na Igreja à vossa oração. Da minha parte, eu também recomendo todas e todos à graça de Deus Pai e do Nosso Senhor Jesus Cristo.


Vosso irmão em Cristo, João XXIV 

 

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