Pôr ordem na própria vida... (I)

Numa sociedade tremendamente brutal e desordenada como a que vivemos, parece meio utópico e sonhador querer "ordenar" a própria vida e também a alheia. Certamente o mundo que temos não é o mundo que queremos! E se olharmos em profundidade a realidade circundante parece como se as pessoas, as coisas e tudo aquilo que nos rodeia estivessem "desenfocadas", desfiguradas e deformadas. Não só as águas da maioria dos nossos rios estão poluídas mas mesmo o coração e a mente do homem encontram-se feridos, deteriorados e corrompidos. Mas o problema maior é que já acostumamos a viver como "homens-gabirus" no meio deste lixo acumulado e dos escombros sociais que nos rodeiam.

Com certeza, não é esse o projeto de Deus! Não é essa a sociedade e nem o homem queridos por Deus! Que fazer?

Assim como existem novas formas de plástica ou terapia para curar e reabilitar pessoas ou coisas seriamente deterioradas e deformadas, os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola (EE) se apresentam como um bom caminho para "pôr ordem na própria vida", permitindo que as pessoas reencontrem sua interioridade profunda, sendo desse modo mais integradas e engajadas. Os EE se apresentam como uma boa ferramenta para trabalhar com o "desordenado" e o desfigurado na pessoa! Isto exigirá a pedagogia do renunciar ao próprio subjetivismo absoluto para descentralizar-se em valores evangélicos que permitam "deixar-se levar" pelo Espírito de Deus e não apenas pelo que nos parece ser mais ou menos razoável.

1. O que não são os EE. Os EE não são uma "desobriga" feita anualmente porque está prescrita nas próprias Constituições! Os que assim se aproximam deles, nada ou pouco conseguirão! Os EE inacianos não são também um "retiro", isto é, passar um breve tempo num lugar tranqüilo e aprazível, curtindo Deus na solidão e na paz. Pelo contrário, os EE "mexem" profundamente com todo o ser da pessoa: sua vida exterior e interior, suas motivações e afetividade. Enfim, os EE não são um tempo de piedosas colocações seguidas de mais ou menos tempo de oração ou reflexão mental ou vocal.

2. O que são os EE. Os EE de Santo Inácio de Loyola são uma pedagogia de discernimento espiritual para tomar decisões sérias e vitais; são um caminho interior que deve ser seguido e respeitado tendo como objetivo a transformação do próprio eu pela graça e misericórdia de Deus.

Seguidos fielmente na sua proposta, os EE são um itinerário espiritual que permite uma experiência profunda do sentido da vida. Este caminho a ser percorrido vai, como um pêndulo, de fora para dentro e do interior para o exterior. Parte da própria situação em que se encontra o exercitante e o leva para um lugar (fora de todo lugar), onde a pessoa se defronta com os valores novos e objetivos do Reino de Deus. Os EE têm, pois, uma meta; um objetivo a ser experimentado, alcançado e vivido: experimentar a realidade do HOMEM NOVO aberto a si mesmo, aos outros, ao mundo e a Deus. Os EE são verdadeiramente uma experiência de Deus, profunda e mística mas, ao mesmo tempo, são respostas decididas e claras de uma liberdade engajada.

Os EE, pela metodologia que seguem, são uma boa ferramenta para "pôr ordem" na desordem da própria vida (e conseqüentemente na realidade circundante) ao confrontar-se com o horizonte epigenético de Deus revelado na Escritura contemplada. Entendemos "ordem" não como um modelo preexistente que deve ser dificultosamente conhecido e copiado, mas como um experienciar mecanismos de verdade e de vida que se fazem presentes e importantes na vontade humana. Cremos realmente que é possível experimentar esses dinamismos de vida no meio de situações extremadas de mentira, limitação e morte! Se assim não fosse negaríamos todo poder à graça de Deus.

Este caminho interior de transformação, integração e engajamento pode ser aparentemente feito, ficando apenas em níveis superficiais e infecundos. Lembremos algumas dessas possibilidades, tendo em conta o sugerido por Roland Bhartes. Este semiólogo francês coloca diversos níveis no texto dos EE:

1º Nível do autor: aquilo que Inácio de Loyola diz no texto. É a experiência de Inácio de Loyola, homem do século XVI, não a nossa! Sua experiência é importante, mas não repetível. O mais importante não é o texto, mas a experiência que brota naquele que faz este caminho.
           
2º Nível do diretor: experiência daquele que dá os EE. Conteúdo "regurgitado" e transmitido quando se orienta alguém. É a experiência do diretor, não a do exercitante! Aqueles que ficam presos a um desses dois primeiros níveis poderão estar fazendo "retiro", mas não os EE.

3º Nível do exercitante: experiência do exercitante, o que ele faz a partir do apresentado pelo diretor. Aqui começam propriamente os EE.

4º Nível de Deus: o que Deus escreve e inscreve no exercitante quando ora. Essa escrita divina, "teo-grafia", deve ser decifrada (lida e entendida) pelo exercitante para poder começar a se deixar levar pelo Espírito de Deus, fonte de verdadeira VIDA dentro e fora dele. Os EE pressupõem este nível profundo, misterioso e maior que não se pode manipular mas apenas "sentir" e experimentar. Este é o nível a que devemos chegar, mover e rezar!

Os EE, quando bem feitos, questionam a vida de uma pessoa. Eles acabam com a tranqüilidade conquistada pelos afetos desordenados, derrubando toda pseudo-vida espiritual alicerçada em fundamentos ambíguos ou falsos. O pressuposto, pois, que apresentamos é o seguinte: quanto maior a consciência de si, dos outros e do mundo, tanto maior a possibilidade de tomar consciência da ação de Deus, experimentando maior transformação e integração de vida. O Deus escondido subjaz em toda realidade histórica, mesmo em toda matéria opaca mas precisa ser "sentido", intuído e percebido no âmago da vida. Essa percepção é um verdadeiro encontro com o Tu divino que emerge, misteriosamente, como nosso sentido último mas que ainda é preciso ouvir, seguir e amar.

Constatamos, porém, um fato: nem todos os que fazem EE percebem essa presença divina escondida e muito menos ouvem e seguem a sua palavra. Quantos não mudam significativamente a própria vida, nem o contexto onde habitam! Quantos vivem na maior ambigüidade e dicotomia separando inexplicavelmente fé e vida! Por quê?

Sem querer cair no subjetivismo relativista, denunciado por João Paulo II na sua encíclica Splendor Veritatis, assinalamos algumas respostas: Muitas pessoas fazem os EE apenas por "desobriga", isto é, como algo que deve ser obrigatoriamente feito todos os anos mas sem o desejo verdadeiro de entrar neles em profundidade. Quem de antemão espera pouco dos EE, certamente nada encontrará neles! Inácio de Loyola, pelo contrário, nos lembra que é preciso entrar nos EE "com grande ânimo e generosidade" (EE 5), com desejos de ir a fundo, experimentando os frutos desejados! Outros separam, radicalmente, a experiência de Deus das raízes da própria vida. São capazes de fazer até "belas experiências religiosas" paralelas que nada questionam e nunca convertem. Outros, enfim, fazem os EE a um nível teórico e racional deixando de lado não só a metodologia inaciana, mas também dimensões complexas da própria personalidade. Desse modo, os EE nunca poderão realizar o seu objetivo! Fazem-se os EE apenas ao nível consciente (racional), deixando de lado outras realidades pessoais inconscientes (afetivas), muito maiores e significativas!

A pergunta que agora nos preocupa é: Como rezar a um nível profundo, engajado e místico? Como orar a totalidade do ser humano: o consciente e o inconsciente, o racional e o afetivo de modo que fé e vida permaneçam firmemente entrelaçados e unidos? Como relacionar-se com Deus a partir de toda a complexidade do nosso ser? Numa palavra: o que fazer para que realmente os EE sejam eficazes?

No início desse processo, pensamos que somos nós os que fazemos os EE, mas percebemos que realmente foram os eles que nos fizeram por dentro! Aprofundemos, pois, nessa imensa realidade oculta (inconsciente) que nos habita, mergulhemos sem medo nela, para compreendê-la melhor e orientá-la para Deus. Desse modo, ampliaremos não só a percepção da nossa realidade pessoal e circundante, mas sentiremos a proximidade e intimidade indizível (só experimentável!) do Deus sempre maior.

3. O mundo do inconsciente. Sem querer psicologizar os EE, desejamos que eles sejam bem feitos e orientados, tendo em vista a totalidade da pessoa humana. Para que isso aconteça, é preciso trazer à tona as dimensões obscuras e desconhecidas, do ser humano. O que foi contaminado pela mentira e pecado também deverá ser tocado pela verdade e pela graça. A salvação, oferecida gratuitamente pela fé em Jesus Cristo, chegará eficazmente até o mais profundo do homem, curando-o de toda ferida e integrando-o em todas as dimensões. É possível fazer realmente a experiência dos EE sem ter em conta toda esta nossa realidade complexa e obscura?

Aproximemo-nos, pois, desse imenso mundo do inconsciente, para que também ele participe deste percurso espiritual; deste encontro transformante com Deus!

Comparemos a mente consciente com uma rolha de cortiça boiando no enorme oceano do inconsciente! A parte maior escondida, inconsciente, deseja também entrar no processo dos EE. Se assim não for, algo importante é deixado perigosamente de lado e os EE perdem seu poder transformador e ordenador!

Mas, o que é o inconsciente? Com certeza não é um mero apêndice da mente consciente onde reprimimos e jogamos o desagradável experimentado. Não! Ele é muito mais do que isso! O inconsciente é fonte criadora de muitas coisas que surgem na mente consciente! É a partir deste campo de energia submersa que a mente consciente se desenvolve, amadurece e expande. Ambas as mentes (consciente e inconsciente) têm papéis críticos a desempenhar no equilíbrio do "self" total de cada um.

O inconsciente surge como matéria prima da consciência humana. Dele brota a capacidade de sentir e ordenar idéias, percepções, sentimentos e imagens. O inconsciente aparece como o miolo original e primitivo da humanidade que todos carregamos! Como não ter em conta esta realidade no itinerário espiritual dos EE?

É verdade que o nosso inconsciente está fora de toda visão. Ele é pela sua importância e grandeza, poderoso e perigoso, tanto quanto um "iceberg" submerso e desconhecido. A mente consciente não percebe que a totalidade psíquica é muito maior do que ela mesma; fica surpresa quando descobre que dentro de si há algo que se move ("e pure se muove!”) apresentando-se, tantas vezes, sem pedir licença. Algumas pessoas, ao se defrontarem com algum elemento surgido do inconsciente, podem se emocionar, suar e estremecer! São os percalços de uma caminhada!

No fundo deste oceano invisível de energia que nos habita, imensas forças desconhecidas estão trabalhando a favor e contra nós. Reinos míticos (arquétipos), centros de consciência alternativa, personagens disfarçados, sentimentos, idéias, atitudes, valores diferentes etc., esperam ser descobertos, acolhidos e reconhecidos pela mente consciente! Em poucas palavras: é bom que o exercitante saiba que os EE também agem nas profundezas abissais do próprio inconsciente!

a) A linguagem simbólica do inconsciente. O inconsciente se manifesta, quase sempre, através de uma linguagem simbólica ou neurótica que, aos poucos, deverá ser lida, compreendida e interpretada. Quando esses "personagens" interiores se apresentam simbolicamente é por que algo têm a nos dizer. Eles se comportam como pessoas que vêm ao nosso encontro: se não são acolhidas e reconhecidas agridem e complicam nossa vida! Não há nada pior do que um inconsciente reprimido!

É preciso entrar no mundo dos símbolos para entender o inconsciente e se relacionar adequadamente com ele. O inconsciente não só age sobre e através de nós, mas também se manifesta de vários modos. Por sua própria natureza, ele é profundamente relacional e não gosta, nem um pouco, de continuar eternamente marginalizado, isolado na escuridão imensa do anonimato.

Às vezes nos surpreendemos com o experimentado e sentido: "de onde veio isto? E esta agressividade?... Estes sentimentos, estes medos... são meus? Nunca imaginei que isto (seja lá o que for!) pudesse mexer tanto assim comigo!..." À medida que nos tornamos mais sensíveis a este mundo do inconsciente, adquirimos a possibilidade de "ver" e "sentir" a vida de outra forma, mais aberta a Deus e aos outros: "Que nova vida é esta que agora começamos?" dizia Inácio de Loyola.

Esta parte profunda e desconhecida de nós mesmos tem sentimentos "próprios" (na verdade sentimentos nossos diferenciados!) e quer expressá-los do seu jeito. Às vezes esses "personagens escondidos" são embaraçosos, fortes e violentos, fazendo com que nos sintamos, não poucas vezes, humilhados, quando se apresentam e se revelam espontaneamente. É preciso que Deus fale e se relacione, durante os EE, com estes nossos personagens interiores e eles, como criaturas, com o seu Criador e Senhor! Só assim a totalidade da pessoa será iluminada e transformada, fazendo-se significativa nos seus gestos e palavras.

b) Abordando o inconsciente. A maior parte das pessoas não aborda o inconsciente voluntariamente. Só se tornam conscientes dele, quando enfrentam problemas psicológicos sérios: depressões, raivas infundadas, conflitos inexplicáveis entre vida e valores, impulsos primitivos irracionais ou destrutivos, que acabam minando, teimosamente, o próprio equilíbrio e existência.

No inconsciente reside o padrão primevo, a forma, o plano segundo o qual a mente consciente e a personalidade funcional completa de cada um serão formadas, evidentemente, com suas características próprias: qualidades e limitações.

Só uma pequena porção deste depósito de energia bruta escondida foi assimilada na personalidade consciente. A maioria das pessoas está construindo cega e perigosamente suas vidas sem saber, nem um pouco, dos dinamismos ocultos que carregam. O esboço, os traços do que seremos estão enraizados numa parte profunda do inconsciente. É importante, pois, conhecer esta realidade para não "reagir" apenas como autômatos aos impulsos experimentados, mas decidir o que realmente queremos ser e fazer.

As imagens simbólicas do inconsciente penetram no nível do consciente principalmente por duas vias: os sonhos e a imaginação. O inconsciente dispõe destes dois caminhos naturais para estabelecer uma ligação e conversar com a mente consciente. Ambos são canais de comunicação altamente sensíveis que a "psyché" desenvolveu, para que os níveis consciente e inconsciente possam conversar entre si.

c) Os sonhos. Freqüentemente pouca importância damos aos sonhos e, quando eles acontecem, a única coisa que fazemos é sentir um pouco as sensações, positivas ou negativas, que eles deixaram. Mas, nada existe mais real do que os sonhos! É no mundo dos sonhos que o inconsciente se manifesta e exerce sua dinâmica poderosa e livremente, para gerar atitudes, ideais, crenças ou, pelo contrário, compulsões que motivam a maior parte do nosso comportamento. De fato, eles se traduzem, mais cedo ou mais tarde, em atitudes espontâneas, decisões, impulsos, sentimentos, imagens e desejos. Os sonhos expressam o mais profundo do nosso inconsciente. Aprendendo a lidar e interpretar os símbolos oníricos, perceberemos melhor a ação do inconsciente em nós e nos sentiremos mais seguros para tomar as decisões adequadas à nossa realidade!

Cada sonho é uma obra-prima de expressão simbólica! Podemos comparar os sonhos com uma tela de TV ou cinema, na qual o inconsciente projeta seu drama interior. Aos poucos compreenderemos que todos os "personagens interiores" manifestados compõem o grande e belo mosaico de nossa personalidade total.

É bom lembrar que há sonhos comuns (normais) e grandes sonhos (expressão do inconsciente coletivo) que trazem significados importantes para a própria pessoa. Estes últimos devem ser trabalhados e rezados, para experimentar maior harmonia, integração e sabedoria. Desse modo viveremos, com maior profundidade e consciência, tanto a realidade interior quanto a exterior. Alguns até disseram que dialogar com o sonho era dialogar com a divindade! A Sagrada Escritura freqüentemente mostra esta comunicação de Deus por meio dos sonhos. Acaso Deus não pode usar nosso inconsciente para se revelar e comunicar? E o sentido fundamental e vital encontrado não nos coloca face-a-face com o mistério da divindade doada e revelada?

d) A imaginação. Este é o segundo grande canal de comunicação do inconsciente. A imaginação é uma verdadeira corrente de energia, cheia de significado. Tanto o sonho como a imaginação têm a característica de converter as formas invisíveis do inconsciente em imagens perceptíveis para a mente consciente.
           
Assim como o inconsciente descarrega energia durante a noite, criando os sonhos, ele também atua durante as horas de vigília criando imagens. As imagens que fluem e tomam diversas formas: imagens frívolas até imagens "místicas" (clarividentes ou visionárias). Na base da escala está a "fantasia passiva" (sonhar acordado, devaneios, passatempos, distrações, que nada acrescentam à consciência) e no topo a "experiência mística ou visionária", através da qual a imaginação ativa e a experiência religiosa se fundem como numa coisa só.

Na verdade, ninguém inventa nada na imaginação. O material aparecido quase sempre tem sua origem no inconsciente. A imaginação é como um transformador que converte o material invisível em imagens que a mente consciente pode perceber, ler e interpretar. O inconsciente se expressa pelos símbolos da imaginação. Queiramos ou não, todos temos um imaginário projetado na nossa mente. Este imaginário pode ser formado por material primitivo (superficial, sensual, egoísta, fechado) ou por outro material mais profundo e elaborado (altruísta, espiritual, aberto). O tipo de imaginário que temos revela, pelo conteúdo que carrega, em que etapa de vida espiritual (ou semana dos EE) nos encontramos.

O imaginário traz consigo, freqüentemente, pensamentos que nos convidam a tomar decisões na ordem do agir. Esses pensamentos nos empurram para a vida ou para a morte, deixando um lastro afetivo de consolação ou desolação. Chamamos esses pensamentos de "moções"! Santo Inácio diz o que devemos fazer com as moções: "as boas para acolher e as más para repelir" (EE 313). Aproximemo-nos, um pouco mais, desse imenso mundo do "imaginário" para conhecê-lo e tê-lo ao nosso favor.

e) Os níveis do inconsciente. Muitos ficam chocados quando se deparam com esse material primitivo e egoísta, apresentado espontaneamente na própria imaginação. Outros não suportando tamanha "visão" e invasão a reprimem perigosamente. A maioria sentindo "tal" imaginário primitivo e egoísta, tomam atitudes esdrúxulas, facilmente ambíguas e embaraçosas. E só os mais conscientes de toda essa realidade profunda manifestada, assumirão realisticamente sua "sombra". É bom saber que há outros "imaginários", mais transparentes e gratuitos, carregados dos valores que se contemplam em Jesus Cristo! Queiramos ou não a vida nos configura com Jesus!

Todo esse material emergido e encontrado no imaginário deve ser lido, questionado e rezado. Desse modo se descobrem os conteúdos de vida ou morte que carregamos, sendo possível tomar decisões mais acertadas.

Os EE são um processo dividido em quatro Semanas ou etapas. As etapas indicam o grau e tipo de experiência espiritual vivida ou experimentada. A proposta dos EE é fazer esse percurso no nível consciente, partindo do Princípio e Fundamento (PF) até chegar ã Contemplação para Alcançar Amor. À medida que se avança nos EE dá-se um aprofundamento no inconsciente, revelado pelo imaginário acontecido que manifesta claramente em que etapa real dos EE se encontra.

Esquematicamente, podemos expressar o processo espiritual dos EE da seguinte forma:

C'e D':                                                                                  A
Via Unitiva                                                                           L
                                                                                              T
B'                                                                                           U
Via Iluminativa                                                                    R
                                                                                               A
A'
Via Purgativa

PF_______1ª_______/_____2ª___________________/_____3ª_____/_____4ª_____AA
                        Processo dos EE (Consciente)                           LARGURA
A
Nível primitivo: 1. Reprimido
                             2. Concretizado
                             3. Carregado                                     P
                             4. Acolhido (porta aberta!)              R
___________________________________                  O_______________________
B                                                                                      F
Nível relacional: 1. Submissão ou dominação            U
                             2. Funcional                                      N
                             3. Serviçal, sadio e livre                   D
_________     ________      _________                          I __________       _________
C                                                                                      D
Nível oblativo: a vida que se dá                                    A
_____   ___   ___   ___   ___   ___   ___   _                    D __     __    __     __     ____   
D                                                                                      E
Nível místico:   Intuitivo,
                          Transparente
                          Místico
                          Ver além das aparências

À medida que se percorrem as diversas etapas ou semanas dos EE, se experimentam "imaginários" diferentes, correspondendo às maiores profundidades do inconsciente e conseqüentemente da vida espiritual.

Na primeira semana dos EE, encontramos mais o inconsciente inferior ou primitivo (A) que representa o passado, os nossos instintos atávicos, experiências negativas, sofrimentos, traumas etc.. Experimenta-se um imaginário primitivo, egoísta, fechado e morto, tendo como horizonte do desejo, toda a área do corpo e dos sentidos. Brota a auto-suficiência, orgulho, desejo desenfreado de conforto, riquezas e prazeres aparentes, status etc. A pessoa pensa só em si mesma e deseja a união carnal. Faz-se a experiência da própria "sombra". Corresponde à via purgativa que levará a fazer uma experiência profunda de conversão.

Inácio de Loyola passou por semelhantes estágios. Acaso as imaginações sobre "as coisas do mundo" que o seduziam mentalmente pelo espaço de algumas horas não pertenciam a esta fase do seu processo de libertação? Nesta etapa do processo, como em todas as outras, o imaginário apresentado é imposto, na sua cruel e espontânea nudez.

Tomando consciência das próprias fragilidades, pede-se insistentemente, ao Senhor da Vida, que se faça presente nos abismos da própria escuridão e morte. Só assim pode-se experimentar o amor misericordioso do Senhor na própria fraqueza e entrar agradecidos na 2ª semana. Com gratidão acolheu-se a realidade própria e alheia, abrindo-se então uma porta para o inconsciente médio (B). Ele representa tudo aquilo que é atual, mas não plenamente consciente, por não termos ainda ampliado ("iluminado") os horizontes do nosso relacionamento. Surge, então, espontaneamente, um imaginário relacional que, aos poucos, vai se convertendo em gratuito e evangélico em quanto se contempla a pessoa de Jesus. Surge o campo misterioso das relações e afetos. Lenta e misteriosamente o "TU" divino ocupa o centro da própria vida, convidando para relacionamentos mais livres e comprometidos. Entra-se, desse modo, na via iluminativa, onde vão se fazendo claras uma porção de coisas!

A "iluminação" que Inácio teve à beira do rio Cardoner pertence a esta fase do processo. A mente se lhe abre e começa a entender “claramente” os mistérios divinos. Foi "iluminado!" "Entende" as coisas divinas e muito mais as humanas! Todas as experiências em relação à pessoa de Jesus devem ser colocadas nesta 2ª fase. Jesus se apresenta não só como Senhor, mas também como Mestre que deve ser ouvido, amado, seguido e obedecido.

Uma vez iluminado pela pessoa e pela proposta do Senhor, começam-se a experimentar outros imaginários diferentes, correspondentes ao inconsciente semi-profundo (C). Este nível representa, em certo modo, o futuro e as mais altas potencialidades e energias superiores da pessoa humana. Estas imagens, agora manifestadas e outrora latentes, não conseguiam se manifestar por falta de espaço, transparência e gratuidade. Só agora, lenta e suavemente, vão surgindo, altruístas e oblativas, superando os limites das próprias "feridas" e condicionamentos até agora experimentados.

O imaginário da 3ª semana apresenta um material profundamente dado e doado, capaz de "ver" o Deus escondido em toda e qualquer realidade deteriorada, corrompida e deformada. Deseja-se, a todo custo, a união espiritual! Entra-se na verdadeira via unitiva ou mística, onde o "imaginário" doativo, abre-se para estágios ainda maiores e mais profundos.

"Eu vos serei propício em Roma!" É a visão de Inácio na Storta. Quando, humanamente, todas as portas pareciam se fechar, eis que numa pobre e desmantelada capelinha à beira da estrada, Deus vem gratuitamente ao seu encontro. Inácio "vê" Jesus com a Cruz às costas e sente que Deus Pai realmente o colocava com seu Filho, como companheiro e Cirineu. Os temores se esvaíram e experiencia, por cima das dificuldades e perseguições, a verdadeira comunidade que é comunhão de fé com Deus e de gratuidade com os outros.

Chegamos, assim, à 4ª semana e com ela, de algum modo, ao inconsciente profundo (D). Começa-se a experienciar processos próprios do inconsciente coletivo. Alguns chegam até a dizer que, a experiência dos arquétipos, é uma verdadeira experiência mística! O exercitante experimenta um imaginário verdadeiramente gratuito, transcendente e transparente. Estamos na experiência mística, na superação dos sentidos e do sentido, na união cósmica com tudo e todos. Entra-se no campo do Espírito, da experiência mística, do ser "sensitivo", intuitivo e contemplativo na ação. É o máximo da "visão" (vê-se além das "aparências"), do "sentir" (comunhão amorosa) e do engajamento (serviço gratuito)! Experienciam-se sentimentos de plenitude e de ampla empatia pessoal. Pura graça! A pessoa busca a comunidade e é, espontaneamente, apostólica e profética. Tem significado!

Encontramos este "HOMEM NOVO" na vida de Santo Inácio. Que diferença entre aquele Íñigo "mundano e vão" levado pela "carne" e este Inácio "pobre e peregrino" levado pelo Espírito! Se a oposição acusava Inácio e seus seguidores de "iluminados" era porque viam neles um outro modo, mais "louco", mais profético, de viver a vida. Agora, encontra-se Deus em tudo e tudo em Deus! As fronteiras e os limites acabaram!

Estes diversos níveis do inconsciente (pedagogicamente assim chamados!), se modificam na mente consciente à medida que o exercitante percorre as diversas etapas dos EE. Evidentemente, estes degraus ou níveis aqui descritos não são estatísticos nem parcelados em si mesmos, mas dinâmicos e interagidos (a realidade é sempre mesclada!). Contudo, sempre haverá um imaginário mais permanente e teimoso, um "algo" que se destacará sempre como mais significativo e empenhativo. Provavelmente, ele nos indicará em que etapa da vida espiritual podemos nos encontrar.

Uma coisa parece certa: quanto mais ignorado ou reprimido o inconsciente, menos revelará sua gratuidade, transparência e profundidade! Pelo contrário, à medida que se caminha no processo consciente dos EE (semanas!), tanto maior será a abertura entre consciente e inconsciente possibilitando, desse modo, maior percepção do Deus escondido que tudo habita e em tudo se manifesta!

É possível passar de um imaginário primitivo apresentado para outro mais gratuito evangélico. Pode-se experimentar Deus na desordem da própria treva. Onde a vida foi truncada e embotada, Deus Pai pode gerar sempre nova vida, e onde ela foi negada e fechada poderá fazê-la crescer, florescer e frutificar! A vida espiritual (vida segundo o Espírito!), na sua possível experimentação, não tem limites fechados e repetitivos como os pode ter a vida carnal! Ela se abre irrepetivelmente para o mais!
(Continua...)

2 comentários:

  1. Caro Pe.Ramon,
    Ainda não tinha lido nada que descrevesse tão bem os EE como esse texto.Muito bom!
    Lylia Diógenes

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  2. Pe.Ramon,
    Seu texto me levou de volta para as minhas experiências dos retiros em Itaici e dos EE na vida...Obrigada por este recordar o Bem que tenho vivido desde lá!!!!
    Bjs
    Silvia

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