Papa Francisco, um jesuíta... (Cf. John O’Malley SJ)

Quando Jorge Mario Bergoglio foi eleito papa, todo mundo ficou surpreso, mas ninguém ficou mais surpreso do que nós. Nunca houve um papa jesuíta, e nós até imaginávamos que nunca haveria algum. Nossas relações com alguns papas têm sido muitas vezes tensas – a tal ponto que, em 1773, o Papa Clemente XIV nos suprimiu. Além disso, sei que somos controversos dentro do catolicismo. Temos amigos e inimigos ardorosos. Por isso, como haver um papa jesuíta?

Mas aconteceu. E então? Faz alguma diferença? O povo que o diga. Eu considero-o um dos nossos em cada gesto e em cada palavra. Eu selecionei dez aspectos do seu comportamento como Papa que me parecem, acima de tudo, jesuíticas.

1. Ele tem uma conversa franca. Os jesuítas temos fama de sermos ambíguos nas nossas conversas, mas confesso não ser essa a minha experiência, depois de décadas na Companhia de Jesus e como historiador da Ordem dos Jesuítas. As falas de Francisco são livres do jargão eclesiástico e de uma agenda escondida. Ele é direto: O que diz é o que ele quer dizer.

2. Quando o Papa Francisco exorta a Igreja a ir para as fronteiras e periferias está ecoando palavras de alguns dos nossos mais recentes documentos oficiais. É claro que não temos o monopólio dessa ideia, mas realmente somos uma Ordem missionária.

3. Os jesuítas, desde o início, tivemos como objetivo ir ao encontro dos que mais precisam de ajuda. Na década de 1970, quando Pedro Arrupe era Superior-geral dos jesuítas, fundou o Serviço Jesuíta aos Refugiados. Bergoglio foi superior Provincial dos jesuítas na Argentina e responsável por inspirar seus companheiros nesse sentido. Sua visita como Papa aos refugiados em Lampedusa não foi um impulso casual.

4. Durante a visita a Lampedusa, o Papa clamou contra a "globalização da indiferença", e destacou o nosso forte compromisso com a "promoção da justiça". Esse compromisso, obviamente, teve um efeito profundo sobre ele, assim como em todos nós.

5. Quando Francisco se recusou a viver no Palácio Apostólico, me pareceu essa atitude "muito jesuíta". Eu admiro a nossa Cúria Geral em Roma, a poucos metros da Cúria Vaticana. Ela é completamente diferente de qualquer outra sede mundial que eu já conheci. Não há luxo de qualquer espécie e nenhum privilégio especial. Todos os membros da Cúria, dos cargos mais altos até os mais baixos, se revezam servindo as mesas nas refeições. Como provincial, o Pe. Bergoglio passou muitos dias em nossa Cúria e fez muitas refeições no refeitório. Ele tinha um modelo.

6. O superior-geral dos jesuítas tem uma mesa própria, mas igual a todas e deixa ao acaso quem poderá almoçar com ele. Quando eu vi a foto do Papa Francisco, esperando a sua vez na fila do refeitório do Vaticano, eu sabia onde ele tinha visto essa ideia que agora ele punha em prática. Quando ele cumprimentou a multidão na Praça de São Pedro, quando eleito, com o simples “Buona sera”, pareceu-me exatamente o que eu esperaria que um jesuíta fizesse.

7. Pouco depois de sua eleição, o Papa deu uma entrevista para os editores de revistas jesuítas de todo o mundo. Entre as muitas coisas que ele disse e me impressionaram, estava a amplitude cultural do papa. Todo mundo sabe que ele é fã de futebol, mas, nesse artigo, ele revelou um profundo conhecimento de literatura, música e pintura. Em nossa formação como jesuítas estudamos assuntos para além do currículo clerical padrão. Nossa história está cheia de jesuítas astrônomos, cartógrafos, dramaturgos, pintores e escultores. Na sua formação, Francisco teve que ensinar literatura e até psicologia. Ele é profundamente religioso, mas combina isso com a cultura, que é uma tradição jesuíta.

8. Francisco fala diretamente, com imagens impactantes, como quando disse aos sacerdotes que deviam ter o "cheiro de suas ovelhas". Seus gestos também são significativos, como quando lavou os pés de uma jovem muçulmana, condenada em uma prisão romana. A vida se traduz em palavras e gestos.

9. Ele me parece uma pessoa eminentemente livre. Ele diz e faz o que ele achar estar certo. Ele é livre por dentro. É difícil não atribuir essa liberdade, em grande parte, ao resultado de suas experiências nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. O objetivo dos Exercícios é ajudar as pessoas a chegarem a à liberdade interior.

10. Mais do que a frase "com cheiro das ovelhas", a citação que mais ouço é "Quem sou eu para julgar?..." Uau, foi um escândalo! Essa foi a resposta à pergunta de uma jornalista sobre os gays, no seu retorno do Brasil. Eu vejo um homem que passou por uma profunda conversão e teve que admitir para si mesmo outras ideias e outros métodos. Também vejo os Exercícios Espirituais como cruciais nesse respeito. Os Exercícios levam a um processo de conversão em curso, onde continuamos a enfrentar as próprias deficiências. O processo deve ser sempre a humildade.

Tanto ele quanto eu estávamos presentes na 32ª Congregação Geral dos Jesuítas. O primeiro decreto dessa reunião começa com estas palavras: "O que é ser jesuíta? É reconhecer-se um pecador...". O Papa Francisco votou pela aprovação desse decreto. Todas as evidências apontam para o fato de ele ter levado isso a sério.